Os dois mil metros quadrados da área expositiva da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, são pequenos para sintetizar sete mil anos de história e manifestações artísticas. Mas o que se vê na mostra China: a arte imperial, a arte do cotidiano, a arte contemporânea, em cartaz a partir do domingo 18, não deixa de ser uma ótima iniciação ao patrimônio de uma das mais antigas e exuberantes civilizações da humanidade. Reunindo cerca de 1.800 peças – entre achados arqueológicos, arte utilitária, religiosa e decorativa das diferentes dinastias, artesanato e obras contemporâneas –, a exposição promove saltos cronológicos e cruzamentos os mais variados. Pode fazer o visitante sair maravilhado como também sem rumo, tamanha a quantidade de informações em tão pouco espaço de tempo, não bastasse a alta carga de exotismo que encerra.

Para se criar o clima adequado, os dois salões simétricos da Faap foram transformados numa espécie de palácio, com pátios e corredores que lembram as construções da Cidade Proibida, em Pequim. No menor deles, foi montado o segmento Arte imperial, cobrindo da pré-história à dinastia Qing, que durou de 1644 a 1911. A maior parte das obras veio do Musée National des Arts Asiatiques Guimet, de Paris, uma das maiores instituições do gênero no mundo. Fundado em 1889, tem um acervo de 45 mil peças. Deste conjunto, o curador Jean-Paul Desroches, conservador-chefe do departamento China, selecionou 110 obras – mais sete vieram de museus portugueses. As mais antigas são do período neolítico, que vai do quinto milênio ao segundo milênio antes da era cristã: 13 garrafas, bilhas, jarras e discos feitos em cerâmica vermelha.

Dividido em sete módulos, o segmento da arte imperial será certamente o que provocará as maiores aglomerações, não apenas pela raridade das peças, mas pela oportunidade única de serem apreciadas. Em favor do didatismo, os módulos foram divididos por dinastias, destacando em cada período a sua expressão marcante. Assim, as três primeiras dinastias, os Xia (séc. XVIII a XVI a.C.), os Shang (XVI a XI a.C.) e os Zhou (XI a III a.C.), foram representadas pelos fundidores de bronze, que criavam para os soberanos vasilhames ricamente ornados, como os ding, para cozimento; os lei, para conserva; e os hu, para bebidas alcoólicas. A exposição traz 13 peças do tipo, entre elas um vaso lei, do período dos Zhou, e um vaso
ding com tripés, da dinastia Shang.

Dos anos de prosperidade da dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.), a mostra traz um objeto exemplar: uma cabeça sorridente de um serviçal, feita de terracota cinza. No entanto, o que mais fascina nos tempos imperiais é a riqueza e o acabamento dos objetos decorativos e utilitários da nobreza, como os cavalos de terracota usados para ornamentar palácios e tumbas durante a dinastia Tang (618-907), dois deles encantadores em sua graça – Cavalo com cela e Cavaleiro, ambos do século VII. Quando se fala em cerâmica e porcelana, a excelência chinesa desponta. Não faltam bons exemplos na exposição, especialmente nos módulos dedicados às dinastias Song (960-1279) e Ming (1368-1644), quando as hoje clássicas porcelanas azul-e-branco ficaram famosas em toda a Europa, a partir da rica Veneza.

Hábeis no trabalho manual, os chineses sempre se destacaram também na qualidade de seu artesanato, a ponto de a mostra dedicar ao tema um segmento inteiro, Arte do cotidiano. É onde se concentra a maior quantidade de peças, cerca de 1.600, todas vindas da Coleção François Dautresme. Descendente de uma família de navegadores que faziam a rota do Extremo Oriente, Dautresme se apaixonou pelo país ainda criança, ao ouvir narrativas de viagem de um tio capitão. Em 1963, foi um dos primeiros ocidentais a ter livre acesso às províncias chinesas, quando começou sua coleção de objetos domésticos e decorativos, adquiridos em mais de 150 viagens. “Os chineses fabricam objetos para o uso próprio e, devido à dificuldade dos transportes, trocam pouco os produtos”, explica Dautresme. “Daí a variedade de objetos nas diferentes províncias e a existência de diferentes técnicas de fazer cerâmica ou bambu trançado.”

Os trabalhos com bambu, em especial, fazem parte de uma tradição milenar e a qualidade de seu design é flagrante em inúmeros utensílios do cotidiano, como o belo cesto para peixes, vindo da província de Guandong. “São trabalhos feitos com a cabeça e com as mãos. O resultado é tão eficiente que perguntamos sempre de onde veio a idéia de criá-los”, afirma Dautresme, que ainda se lembra quando adquiriu o primeiro item, um ralador de gengibre, na exposição. O objeto é uma espécie de síntese desta verdadeira arte. Não leva prego, cola ou qualquer material que não seja bambu. Organizada em dez temas, Arte do cotidiano traz ainda curiosas quinquilharias do período da Revolução Cultural (1966-1976), quando tudo, de um cinto a um prato, tinha que trazer o rosto sorridente de Mao Tsé-tung, o grande timoneiro, ou de camponeses fortes e determinados. Numa das louças garimpadas pelo francês, se vê um revolucionário empunhando um panfleto e uma brocha. A escrita em ideograma traz os dizeres: “Continuemos a criticar as classes capitalistas.”

Foi esta doutrinação ideológica, que descambou para uma versão local do realismo socialista soviético, a responsável pelo embotamento das artes plásticas chinesas em meados do século XX, sempre vítimas da censura e da falta de diálogo com o Ocidente. Situação que mudou a partir de 1985, quando começaram a espocar os movimentos de vanguarda no país. Pena que ainda defasados e devedores do realismo, como mostra o último segmento da exposição, Arte contemporânea, com curadoria do francês Jean-Marc Decrop, fera no assunto. Reunindo 90 obras de 34 artistas – entre eles Qiu Zhi Jie, Rong Rong, Feng Mengbo, Wang Qingsong, He An, Wang Guangyi e Chen Wembo, todos conhecidos do circuito internacional –, o módulo traz uma obra que se tornou o símbolo da nova geração. Trata-se de Tatoo II, de Qiu Zhi Jie, com um enorme ideograma vermelho, significando: “Não, você não deve.”