Peceber o diagnóstico de câncer é uma experiência que abala qualquer fortaleza. Muita gente chega a pensar que não há saída para a situação. Mas há, em grande parte das vezes. Hoje, segundo os especialistas, cerca de 70% dos tumores podem ser curados. Fazer parte desse índice é o objetivo de todos os pacientes. Para alguns, porém, a batalha não termina aí. É o que mostrou um estudo preliminar apresentado recentemente no congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, realizado em Orlando (EUA). O trabalho, feito pela Universidade do Texas, sugere que uma significativa parcela dos ex-doentes enfrenta problemas psicológicos após a cura, como depressão, angústia e medo de voltar a adoecer.

Célia Chaim, jornalista

“Estou curada. Faltam seis meses para completar aqueles cinco anos que um paciente de câncer pode dizer que está livre da doença. Tenho a impressão de que, se viver 100 anos, jamais vou pensar que estarei livre da doença. Ela me tirou muitas coisas. Primeiro a visão do olho esquerdo, depois os cabelos, a memória, o prazer de beber um vinho… Em troca trouxe o pânico diante da possibilidade concreta de deixar de viver. Atingiu em cheio a minha alegria, a minha capacidade de fazer planos para o futuro. Toda vez que olho para meu filho de oito anos me pergunto se estarei com ele quando tiver a idade do mais velho, 19. Será que estaremos juntos para inverter os papéis e ele me pegar no colo? Será que vou estar por aqui para enfrentar com o mais velho o drama do primeiro (e hoje segundo, terceiro…) emprego? Tudo na minha cabeça passou a ser acompanhado do “será que vai dar tempo?” Rezo para que dê porque tenho muita coisa para fazer por aqui. Parece que a doença me fez ter pressa. Pressa de viver, de mimar meus filhos muito mais do que a pedagogia recomenda, de ajudar minha família, de começar e acabar um trabalho, de deixar sempre a casa pronta, a geladeira cheia, como se eu estivesse às vésperas de uma longa viagem.

Não sinto falta de toda a atenção que recebi quando estava doente. Ao contrário. Via no sorriso do meu marido o quanto ele sofria. Via no olhar carinhoso do meu filho mais velho o desespero, via tudo, a amargura disfarçada em otimismo da minha família, o sofrimento que provoquei ao meu menino de apenas quatro anos que entendia tudo que estava acontecendo ainda que ninguém lhe dissesse nada. Quero esquecer tudo isso e voltar viver acreditando que a vida tem amanhã e depois e depois…”

Para chegar ao resultado, a pesquisadora Rena Vassiloupoulou-Sellin entrevistou 5.143 pacientes. “Até agora recebemos 70% dos questionários, e 40% dos participantes responderam que estão deprimidos ou assustados”, conta. Esse estudo é apenas uma confirmação do que alguns especialistas já sabem. A melhor solução para ajudar o paciente a recomeçar a viver é fazer um acompanhamento com psicólogo. Desde 1996, o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos tem um serviço especial para esses casos.

No Brasil, há trabalhos que seguem a mesma linha. A Universidade de São Paulo (USP) criou há três anos o projeto Chronos (centro humanístico de recuperação em oncologia e saúde do Instituto de Psicologia). O programa atende gratuitamente pacientes com câncer e pessoas que já se curaram. Em relação a quem venceu a doença, é preciso lidar com vários obstáculos (leia depoimentos ao longo desta reportagem). Um deles é o pavor de adoecer de novo. “Basta um espirro para a pessoa pensar que o câncer voltou”, diz Elisa Parahyba, psicooncologista e fundadora do Chronos. Por isso, é importante o paciente aprender a diferenciar os medos reais dos imaginários. “Às vezes, ele teme estar com metástase (disseminação do tumor), mesmo que esteja tudo bem”, conta. Uma técnica que ajuda a lutar contra esse problema é a visualização. Os pacientes imaginam, por exemplo, que o corpo está protegido por uma barreira.

Ivete Aparecida Silva, 37 anos, analista de marketing

“Quando estava amamentando meu filho, percebi que tinha um caroço no seio. Isso aconteceu há dois anos. Achei que fosse uma bolsinha de leite. Como não desaparecia, resolvi ir ao médico. Tomei um susto. Estava com um tumor de dois centímetros na mama. Nunca achei que fosse acontecer comigo.

Não bebo, nunca fumei e não tenho casos de câncer na família. Durante o primeiro momento, neguei a doença. Só caí na real após a cirurgia. Achei que iria morrer. Ficava imaginando que não ia ver meus filhos crescerem. Quando voltei a trabalhar, também foi complicado. Existe cobrança por toda parte e você precisa se mostrar forte. Tentei enfrentar tudo de cabeça erguida. Mas não deu. Durante um ano, fui frequentemente ao médico. Ele me dizia que tudo estava bem. Desconfiei e resolvi mudar. Fiquei apavorada. Os exames pedidos mostraram que estava com metástase no pulmão e um nódulo de quatro centímetros no fígado. O baque foi pior do que quando descobri a doença. Entrei em depressão e tive síndrome do pânico. Enlouqueci de vez.

Meu médico indicou um psiquiatra que me recomendou um remédio. A receita ficou um mês na gaveta. Tinha preconceito. Queria ser auto-suficiente. Não consegui. Tomei o remédio e fiquei mais calma. Meus pesadelos diminuíram e há um mês estou me tratando no projeto Chronos. Aos poucos, estou melhorando. Sinto-me mais leve ao poder falar do problema com meu psicólogo. Geralmente, as pessoas não têm paciência para te escutar. Com a terapia estou me conhecendo um pouco mais. Estou mudando meus valores. Antes, achava ótimo ser uma pessoa que resolvia todos os problemas da família. Aquela que estava pronta para tudo e não sabia dizer não. Hoje procuro me enxergar primeiro. Depois, me preocupo com o mundo. Neste mês, farei o segundo check-up. Estou apreensiva, mas bem menos do que no primeiro. O câncer é uma experiência única. Passei a valorizar coisas simples que antes eu nem me dava conta. O canto dos passarinhos, o cair da chuva…”

Além disso, os psicólogos procuram fazer com que a pessoa se readapte ao cotidiano. Muitas vezes, a doença afasta a pessoa de suas atividades. E, quando é hora de retomá-las, às vezes ela sente receio de não dar conta. Um conselho importante é aprender a desenvolver mecanismos para enfrentar o stress. “Há técnicas de respiração que ensinam a relaxar diante de uma complicação e a tomar decisões sensatas. Isso evita que o nervosismo torne o organismo propício ao aparecimento de doenças”, diz Vicente Carvalho, psiquiatra e presidente da Sociedade Brasileira de Psicooncologia. Muitas vezes, os especialistas precisam tratar de um outro problema que ronda os pacientes curados. Na maioria das vezes, são casos de mulheres que adoecem pois acreditam que o câncer reunia toda a família em volta delas. Curadas, elas se sentem abandonadas. “Geralmente, o distúrbio acontece com quem já tem uma tendência a esse traço de personalidade”, explica Maria Helena Franco, psicóloga da PUC de São Paulo. Essas pessoas usam a doença para manipular o ambiente e precisam aprender a viver sem o artifício. “Mostramos a elas que essa carência afetiva, ressaltada pelo câncer, deve ser resolvida”, completa Elisa.

Outro programa de destaque é o da Universidade de Guarulhos (SP), atualmente coordenado pela psicóloga Eliana Pires. O projeto se destina a mulheres com câncer de mama que vão fazer cirurgia e as que já passaram pela intervenção. No segundo caso, por exemplo, elas aprendem mais sobre a doença. Assim, se conscientizam que venceram os obstáculos e se sentem fortalecidas.

Algumas vezes, porém, há resistência em procurar esse tipo de serviço, pois elas acham que viverão uma situação angustiante. É preciso mudar essa idéia. “O apoio emocional é tão importante nessa segunda fase quanto os tratamentos na primeira”, compara Edna Bispo, coordenadora do grupo de apoio e auto-ajuda para pacientes com câncer, do Recife. Um dos objetivos do programa é ensinar o paciente a se adaptar ao momento pós-cura com orientações simples. “Se ele não pode se esforçar muito, por exemplo, deve lembrar que só deve pegar objetos leves”, diz. O projeto também promove passeios e encontros com os ex-doentes para que eles restabeleçam o convívio social. São medidas como essas que ajudam a pessoa a recomeçar a viver.
 

Vera Gimenez, 53 anos, atriz

“Tive câncer de mama há oito anos e operei. Na época, todo o seio foi retirado e, um ano depois, reconstruído. Não acho que entrei em depressão.

Sabia que o problema era sério, mas não achava que morreria. Talvez porque tomei alguns cuidados. Comecei a trabalhar muito, fiz análise e aula de biodança. É um tipo de atividade que permite à pessoa descobrir e conhecer melhor o corpo. Foi por meio dessa terapia que percebi que o câncer de mama me fez perder a feminilidade. Consegui recuperá-la e segui em frente. Hoje continuo fazendo terapia de apoio.”