26/03/2003 - 10:00
O “americano tranquilo” foi identificado pelo escritor britânico Graham Greene (1904-1992) em sua obra The Quiet American, de 1955. O personagem literário ajudou a formar na opinião pública mundial a imagem do ianque. Ou seja: aquele que, desde os anos 40, governava o mundo através de uma política, definida por ele mesmo, como de “contenção e dissuasão”. Bem ou mal, essa filosofia ajudou o planeta a encerrar a Segunda Guerra Mundial e, depois, os sombrios tempos da guerra fria. Misturava – em doses nem sempre bem balanceadas – a conversa da diplomacia, lastreada por ajuda econômica aos amigos, e o flexionar de músculos poderosos. Um grandalhão simpático, capaz de trabalhar em contato muito próximo com porcos, pois sabia que sem eles não se come hot-dogs; mas que, ao mesmo tempo, impunha respeito a qualquer rival em potencial. Essa doutrina do “americano tranquilo” teve sua morte anunciada no dia 20 de setembro de 2002, através de um arrazoado de 33 páginas intitulado “The National Security Strategy of the US”. A equipe de governo do presidente George W. Bush criou o documento que, na prática e de modo estridente, muda pela primeira vez em 60 anos o modus caminandi da maior potência global. Quem manda agora é uma espécie de valentão paranóico cujo lema seria: “Qual é? Vai encarar?”
O que está sendo questionado é o fundamento multilateralista na condução do engajamento internacional de Tio Sam. “Este princípio vinha acompanhando a política externa americana desde os primórdios do país. Mas a característica ganhou mesmo um caráter definitivo com Woodrow Wilson (1913-1921). Foi ele quem convenceu os americanos de que não era possível a neutralidade diante da Primeira Guerra Mundial. Foi também ele que esteve na ponta de lança da criação da Liga das Nações, precursora da atual Organização das Nações Unidas”, diz o historiador Arthur Schlesinger Jr. No famoso documento “Quatorze Pontos”, Wilson propunha o estabelecimento de “uma associação geral de nações dando garantias de independência política e integridade territorial igualmente para Estados grandes e pequenos”. Wilson sofreu um ataque cardíaco em 1919, tentando mobilizar a opinião pública nacional em favor da assinatura do Tratado de Versailles e da adesão dos EUA à Liga das Nações, rejeitado pelo Partido Republicano no Senado. Ele morreria em consequência disso em 1924.
Daí em diante, outros presidentes embarcaram com maior ou menor entusiasmo nesta linha multilateralista. Franklin Delano Roosevelt (1933-45) repetiria a dose wilsoniana ao convencer o Congresso de que, novamente, o país deveria se engajar na guerra. Há quem garanta que, também como Wilson, este presidente morreu na busca do ideal multilateral. Em 1945, um combalido Roosevelt foi a Yalta, na Criméia, encontrar-se com os aliados Winston Churchill e Josef Stálin para uma conferência de cúpula. Churchill diria depois, em suas memórias, que a viagem de 40 horas deve ter matado o mandatário. Seu sucessor, Harry S Truman (1945-53), também participou de cúpulas e, numa delas, deixou claro a Stálin que os americanos tinham finalmente conseguido engendrar a bomba atômica. Numa demonstração de seu respeito à opinião de aliados, só ordenou o bombardeio nuclear do Japão depois de consulta a eles. As bombas serviriam não apenas para acabar com a guerra no Pacífico, mas também para dar contornos definitivos àquilo que ficaria conhecido como a doutrina de “contenção e dissuasão”, ou Doutrina Truman, impedimento a qualquer aventura expansionista da URSS na Europa. A assinatura de Truman está na carta de criação da ONU, que este governo George W. Bush ajudou agora a desmoralizar e talvez ferir mortalmente. Hoje, como lembrou o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, a ONU só sobreviverá se for profundamente reformulada.
Desde os primeiros passos do governo W. Bush, já se podia pressentir a direção para onde caminhava a política de relações externas dos EUA.
Em menos de um ano, este governo mandou às favas quatro tratados internacionais com os quais o país havia se comprometido. Primeiro, abandonou o chamado Protocolo de Kyoto, o acordo internacional para a contenção do efeito estufa; em seguida, apagou a assinatura americana do documento que estabeleceria a Corte Criminal Internacional; rompeu unilateralmente com o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) com a Rússia e interrompeu conversações e diminuiu as remessas de alimentos
e medicamentos que eram componentes de acordo feito em 1996 com a Coréia do Norte para a interrupção de seu programa nuclear. Fez mais: aumentou tarifas alfandegárias de certos produtos, dando subsídios maiores para os setores agrícola e siderúrgico; deixou o presidente do México falando sozinho em discussões sobre a importante questão da imigração de trabalhadores mexicanos rumo ao norte; e, o que é
pior, virou as costas para a questão do conflito judaico-palestino, perpetuando a escalada de violência na região. Não conta nessa lista de unilateralismo a sucessão de perigosos enfrentamentos do tipo daquele ocorrido durante a captura de avião espião americano pelo governo chinês, em que a verborragia valentona de Bush quase levou o incidente a níveis de enfrentamento bélico. “Todos os episódios compõem uma doutrina a qual se dá o nome de unilateralismo, o extremo oposto de multilateralismo”, diz o professor Schlesinger.
Desse modo, aquilo que consta da Estratégia de Segurança Nacional
dos EUA é apenas o preto no branco de uma doutrina que já vinha sendo levada a cabo. Declara-se com todas as letras no papel que a doutrina praticada desde os anos 40 está morta. Insiste-se que os EUA “não
têm qualquer intenção de permitir que outra potência estrangeira
alcance a enorme dianteira que conquistaram desde a queda da União Soviética, há mais de uma década”. A China também povoa as preocupações dos autores do documento, apontada como potencial “competidor formidável” e possível futuro rival militar. E entende que
são necessárias constantes exibições de superioridade econômica
e militar para coibir as supostas ambições chinesas.
O intuito de unilateralismo, porém, fica patente com a declaração de que “os EUA não vão mais permitir que seu poder e vontade sejam contestados como o foram durante a guerra fria”. Fala-se em vários pontos que não haverá qualquer tipo de compromisso ou negociação quando os interesses americanos importantes estiverem em jogo. E “nós não vamos hesitar em agir sozinhos, se necessário, para exercitar nosso direito de autodefesa com intervenções preventivas” (sic). A conselheira Rice diz que esteve com W. Bush no rancho presidencial em Camp David quando ele “editou pesadamente o texto”. Diz a conselheira que ele cortou partes arrogantes e popularizou o linguajar, para que “a rapaziada de Lubbock (local no Texas) consiga entender o texto”…