12/03/2003 - 10:00
O secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, 48 anos, é um dos responsáveis pelo plano do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para enfrentar o crime organizado no País. Em plena guerra declarada pela bandidagem carioca, que chamou a atenção do mundo com a onda de terrorismo que ameaçou o Carnaval, o antropólogo e cientista político não se rendeu às pressões por ações imediatas
nem abriu mão da defesa de soluções fora do curto prazo. Ele coordenou a política de segurança no governo de Anthony Garotinho no Rio de Janeiro, onde nem a presença do Exército no Carnaval impediu o aumento
de 17% no número de homicídios em relação a 2002. Entre sábado e segunda-feira, 70 pessoas foram assassinadas no Estado. Mesmo assim, Luiz Eduardo mantém suas críticas às propostas de endurecimento da polícia e sua receita para o combate ao crime. Para ele, nada
justifica que a polícia desrespeite os direitos humanos e nenhuma
ânsia pelo enfrentamento militar é mais importante do que investir no futuro. Reorganizar as polícias combatendo a corrupção, segundo ele, é a solução número 1. “Se violência policial ganhasse o jogo, viveríamos no paraíso”, afirma
Não. Guerra supõe o confronto não regido por uma Constituição e por leis superiores. Tampouco se trata de guerra civil porque os criminosos não têm uma proposta alternativa de organização social. Estamos diante da mudança de natureza do crime no Rio de Janeiro. A violência criminosa não é mais associada apenas a estratégias de ampliação de mercado de drogas, mas de ação na cena pública para interferir nas decisões dos poderes constituídos e na opinião pública. Trata-se da emergência de uma prática terrorista, um terror que caracteriza a politização selvagem do crime.
Isso é verdadeiro, mas a situação é ainda mais complicada. Nessas áreas, além da ilegalidade criminosa dos traficantes, muitas vezes há comportamentos ilegais, violentos e cúmplices da polícia. A despeito das ressalvas que devemos fazer em nome dos muitos profissionais competentes e honestos, o que ocorre nessas áreas é um duplo despotismo: o do tráfico e o de policiais corruptos. As comunidades vivem sob o domínio do medo e o constrangimento da dupla tirania. Há uma cumplicidade na ponta entre traficantes e policiais brutais que se corromperam e alcançaram um acordo.
A situação é grave porque o crime não é mais uma entidade paralela. Ele penetra as instituições públicas. Não há mais paralelismo, há infiltração, uma malha invisível que exige um trabalho muito sério de investigação. Romper a ligação da polícia com o crime é pré-condição para o enfrentamento da criminalidade.
Um dia, há muitas décadas, alguma autoridade deu carta branca à polícia para matar. Ao conceder à polícia o direito sobre
a vida e a morte, concedeu o poder de negociar esse direito. Quem
tem carta branca para matar tem o poder de vender a vida, que não deveria ter preço. Na origem do nosso problema grave, que é a cumplicidade de setores minoritários da polícia com traficantes, estava uma autoridade provavelmente iludida de que assim venceria mais facilmente o crime. Fazendo isso, transformou setores da polícia num instrumento de opressão das classes populares, sobretudo os negros. O racismo é parte constitutiva desse processo violento. Isso empurrou as polícias, também por falta de controle e organização, para a negociação na base com os criminosos. As comunidades sabem que as polícias estão rendidas aos acordos com os traficantes, independentemente da cúpula. Há corrupção em outras polícias, como em São Paulo e Minas Gerais,
mas no Rio o lado corruptor é próspero. O tráfico é economicamente sustentável porque uma demanda crescente lhe dá recursos para reproduzir esse pacto permanentemente.
Há um fenômeno sócio-geográfico no Rio muito importante. Há enclaves na zona sul que fazem com que o comércio varejista prospere. Há uma contiguidade espacial com o mercado consumidor. Na organização vertical das favelas, os traficantes se defendem encastelados nos labirintos com um controle visual que favorece fugas e ações bélicas. Em São Paulo é muito mais difícil o controle dessas comunidades pelo tráfico.
Há muito tempo não existe mais o bandido Robin Hood. A comunidade é refém das chantagens do tráfico. Nas 650 favelas do Rio, um milhão e 250 mil pessoas, asseguro que a imensa maioria sente repulsa, ódio e medo dos traficantes. Sente-se humilhada, teme por seus filhos, vive sob o terror contínuo. Quando a população se manifesta contra a polícia, não está se manifestando a favor dos bandidos, mas revoltada com a hipocrisia e a brutalidade. Se a polícia ocupar essas áreas de forma decente, honesta, respeitosa e eficiente, as populações vão vibrar e se sentir amparadas e protegidas. Mas as populações não acreditam que isso seja possível porque não conhecem uma polícia assim.
Uma operação de resgate é urgente e inadiável, mas não uma operação de guerra, e sim uma operação inteligente. Nos Estados Unidos, em bairros pobres tomados por criminosos de Boston e Washington, constituiu-se uma força-tarefa, com uma ação militar, mas sobretudo um trabalho de inteligência. As rotinas dos criminosos foram mapeadas, descritas com precisão. As forças militares, pequenas e bem preparadas, esperavam os bandidos fora do seu bairro, sem pôr em risco a vida dos inocentes. Quando eles saíam para namorar, ir ao cinema, viajar, eram presos. Em um ano houve queda importante dos índices de homicídios e outros crimes.
Montar uma operação de guerra nas favelas é tão custoso e demorado quanto uma operação de inteligência. Os recursos são os mesmos e os nossos potenciais são equivalentes nas duas áreas. Não somos mais superiores nas operações militares
do que na capacidade de investigar.
Evidentemente que sim, desde que seja prioridade. Os gastos e as perdas em vidas por conta dessa tragédia já são suficientes para nos convencer. Se dermos prioridade, teremos recursos. Somos uma das maiores economias do mundo. Se não formos adiante, no próximo ano vamos estar falando sobre o mesmo problema, exatamente como falávamos há dez anos.
Evidentemente que sim, desde que seja prioridade. Os gastos e as perdas em vidas por conta dessa tragédia já são suficientes para nos convencer. Se dermos prioridade, teremos recursos. Somos uma das maiores economias do mundo. Se não formos adiante, no próximo ano vamos estar falando sobre o mesmo problema, exatamente como falávamos há dez anos.
Quando as polícias estiverem organizadas com o mínimo de racionalidade, não houver tanta cumplicidade com
o crime, os bons policiais estiverem controlando inteiramente a instituição, poderemos nos aproximar de um modelo deste tipo.
Hoje seria um suicídio completo entregar às próprias polícias a responsabilidade por sua auto-reforma. O interesse corporativo
domina e impede os avanços radicais de que precisamos.
Defender os direitos humanos e as leis é uma obrigação constitucional das polícias, mas em alguns momentos o policial pode exercer o legítimo direito de defesa de sua própria vida e da vida de inocentes. Se ele tiver de tirar a vida de alguém, isso tem respaldo em todas as declarações de direitos humanos. O que defendemos é que não sejam criadas situações artificiais, que a polícia não extermine, não sentencie e mate, não negocie a vida, não use sua força e sua liberdade em benefício de estender esse direito para além do razoável como instrumento de negociação. As polícias eficientes não são as mais duras. Se violência policial ganhasse o jogo, viveríamos no paraíso. Nossa polícia está entre as mais violentas do mundo.
Defender os direitos humanos e as leis é uma obrigação constitucional das polícias, mas em alguns momentos o policial pode exercer o legítimo direito de defesa de sua própria vida e da vida de inocentes. Se ele tiver de tirar a vida de alguém, isso tem respaldo em todas as declarações de direitos humanos. O que defendemos é que não sejam criadas situações artificiais, que a polícia não extermine, não sentencie e mate, não negocie a vida, não use sua força e sua liberdade em benefício de estender esse direito para além do razoável como instrumento de negociação. As polícias eficientes não são as mais duras. Se violência policial ganhasse o jogo, viveríamos no paraíso. Nossa polícia está entre as mais violentas do mundo.
Isso se justificaria se o Estado tivesse se rendido à situação, mas o governo do Rio agiu desde o primeiro momento, viabilizando todos os seus recursos. O fato de ter pedido auxílio ao governo federal mostra responsabilidade e coragem política. O que acho indispensável, e o governo do Rio também acha, é uma mudança profunda nas polícias que seja um exemplo para o Brasil. Como o Rio foi mais longe na crise, pode ser o primeiro a dar um salto de qualidade e mostrar ao Brasil que é possível mudar.
É possível controlar. Não há possibilidade de tráfico de armas nessa quantidade sem envolvimento policial ou uma grande negligência. Em Santos, apenas 7% do que sai do porto é fiscalizado. Do que entra, acho que são 11% dos contêineres. No Rio não deve ser diferente. Se você passa a fiscalizar todos os contêineres, cuida das rodovias federais, avança. As armas não chegam aos morros de helicóptero, mas pelas rodovias e pelo porto. Se houver uma fiscalização rigorosa, com tecnologia e orientação, e se combatermos a corrupção policial, a gente muda esse jogo.
As autoridades precisam dar respostas imediatas, mas perder de vista as medidas de fundo só produziria frustrações. Se não abrirmos perspectivas para os jovens, eles vão continuar sendo recrutados pelo tráfico. Por mais que aperfeiçoemos as polícias, elas serão insuficientes para dar conta desse exército.
Não falta dinheiro para matar a fome. O presidente Lula lançou o Fome Zero e vai mostrar que é possível resolver. As condições e os ingredientes necessários para matar a fome estão dados. Ninguém vai perder se houver uma perspectiva distributiva
mais justa. É o que Lula está tentando. Na medida em que houver um consenso de fato sobre a necessidade imperiosa de investimento de alta magnitude na juventude, com inteligência, que não seja um feirão assistencialista, teremos a possibilidade de mobilizar
recursos, dar prioridade e reduzir drasticamente o problema.
Foi um conjunto de fatores, mas basicamente as elites se acostumaram a achar que bandido e crime são problemas de polícia. Não qualificaram a polícia e nunca pensaram em enfrentar a criminalidade investindo a sério no social. Até que a barbárie começou a morder os pés das elites. O fato de o crime sempre ter sido também uma prática usual nos estratos superiores é parte substancial nisso tudo, especialmente a lavagem de dinheiro e as estruturas que alimentam o tráfico de armas e drogas. Os corruptos compõem a cabeça da hidra do crime organizado. Se não entendermos que a corrupção é muito mais do que um desvio moral, não avançaremos.
Em primeiro lugar, ele não submeteu o Ministério da Justiça a nenhuma negociação política. O ministro Márcio Thomaz Bastos é um ícone, acima de partidos e de considerações. Tampouco há contingenciamento de verbas, estamos trabalhando com liberdade e apoio. Diante da crise no Rio, o presidente convocou para si as decisões. O ministro José Dirceu, que é o braço direito do presidente, correu para participar diretamente das negociações no Rio. A segurança está sendo tratada como uma matéria de Estado.