31/05/2006 - 10:00
Lá não tem moças douradas
Expostas, andam nus pelas
quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas
Subúrbio, de Chico Buarque de Hollanda
De costas para o Cristo Redentor, a Vila Cruzeiro, uma das favelas que formam
o Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, entrou para a história
do País pela primeira vez em junho de 2002, quando o traficante Elias Maluco comandou a tortura e a morte do jornalista Tim Lopes. Ela voltaria às manchetes
em 25 de julho de 2004, por ser o lugar de nascimento de Adriano, o centroavante
da Seleção, o homem que, aos 45 do segundo tempo, empatou a partida final da Copa América diante da Argentina. O jogo foi aos pênaltis, com vitória do Brasil. O primeiro time de Adriano foi o Hang Futebol Clube, a equipe que aparece na foto da página anterior, de 1997 – Adriano tinha 15 anos. ISTOÉ conta, a seguir, o que aconteceu com o Hang e seus jogadores. Como um deles se tornou o imperador de Milão, e os outros, não. “A Vila Cruzeiro é uma lição de vida para mim, ajuda a vencer todas as dificuldades”, diz Adriano.
A origem do Hang – “Fui um dos fundadores do time”, afirma Engrismar Gabriel. Era o Natal de 1989. Engrismar, aos oito anos, pegava no gol. O irmão mais velho era sócio de uma malharia em Gaspar, no interior de Santa Catarina. Como a criançada levava a sério o futebol no campo de terra batida Ordem e Progresso, ele deu de presente à turma um jogo de 12 camisas de algodão, azuis e amarelas. No peito estava o logotipo da marca, em letras grandes: Hang. Almir Leite Ribeiro, o Mirinho, ou Mirim – pai de Adriano, garoto de sete anos que já caminhava para se tornar um galalau – juntou a galera e, depois de rápida consulta, não teve dúvida: nascia o Hang Futebol Clube, com nome emprestado da etiqueta. Era equipe boa. Tornaram-se célebres, naquele pedaço do Rio de Janeiro, os domingos de desafio contra os times do Morro do Alemão e do Grotão. Engrismar chegou a treinar como goleiro no time profissional do América. “Desisti porque quis fazer um curso de técnico têxtil no Senai”, diz. Ele hoje trabalha na seção de tingimento da Marisol, em Jaraguá do Sul. Seguiu o caminho do irmão, aquele que fornecera as camisas. “É difícil virar um Adriano”, afirma. “Quantos conseguem?” O Hang durou 15 gloriosos anos. Só acabou em 2004, com a morte de um de seus fundadores – e não era qualquer um, era o homem ao redor do qual se organizavam as peladas.
Bala no crânio – As peladas dos 1990, pelo menos as dos sábados, terminavam no pagode de alcunha onomatopaica, o “Tuque-Tuque”, em frente a um bar localizado na entrada da favela, lá onde o lotação da Penha abandona a avenida para virar a primeira esquerda rumo ao casario. Mirim, pai de Adriano, era freqüentador contumaz do ponto. Deixava o filho com a mãe – e com uma bola de futebol – para atravessar o restante do dia no samba. Era sempre assim até uma tarde de 1992 em que o sargento Ruben, 38 no coldre, começou a discutir com o vizinho João Galo. Fazia um sol de rachar. João acusava Ruben de ter matado o irmão. Ruben negava. Ambos já tinham bebido. A chapa ficou quente. Mirim, assustado, abaixava-se para pegar uma criança no colo quando a arma disparou. A bala ricocheteou no chão e alojou-se no lado esquerdo da testa de Mirim. Os médicos do hospital Getúlio Vargas acharam melhor não extraí-la. Teve alta depois de dois meses. Voltaria ao trabalho de office-boy, mas a empresa em que trabalhava fechou. As dores de cabeça, seguidas de ataques de epilepsia, começaram a acometê-lo. Os problemas de coração surgiram em seguida. Foram 12 anos de complicações, 12 anos com o projétil dentro do crânio, até que um infarto o matou em 3 de agosto de 2004. Tinha 46 anos.
Mirim morreu jovem, mas escapou de virar estatística aos 34 anos – Adriano tinha dez – quando a bala entrou em seu crânio. Seria mais um a constar na papelada
do 22º DP da Penha. Seria apenas número, e não nome, porque naquele tempo
não existia o Imperador de Milão. A Vila Cruzeiro é uma das 12 favelas do Complexo do Alemão, região onde o crime é controlado pelo Comando Vermelho. São 65 mil pessoas. Em 2005, 71 pessoas foram assassinadas na região. Outras 598 tiveram “lesões corporais dolosas”, segundo o jargão. É o dobro de um bairro como
a Gávea, na zona sul do Rio. “Depois do sucesso do Adriano, Almir sempre foi
mais filho que pai”, diz Flávio Pinto, assessor de imprensa do camisa 7 da
Seleção. Era a inversão natural para um fanático torcedor do Flamengo que, na contramão de todas as estatísticas, via o garoto crescer no clube mais popular do País. Na foto do Hang, Mirim é o da ponta-direita, veste uma camisa do Flamengo com o logotipo Lubrax no peito.
“Saudades eternas” – No peito de Hermes Silva Leite, de 26 anos, lê-se: “Saudades eternas.” Há uma foto e, embaixo dela, um nome: “Mirim”. A camiseta branca foi estampada logo depois da morte do pai de Adriano. Diversas delas, com a imagem desbotada, circulam na Vila Cruzeiro. As do Hang agora dormem em gavetas. Foram vistas, pela última vez, no velório de Mirim. Para homenageá-lo, os meninos do time decidiram vesti-la. “O Mirim se preocupava demais com a gente”, diz Hermes, homem de quem é difícil arrancar um sorriso. “Ele cuidava do time, mas cuidava também da gente, da nossa família.” Hermes tem mulher e três filhos. Desempregado, vive com R$ 500 mensais que amealha, segundo ele mesmo diz, com “bicos”. Nos tempos do Hang, era cabeça-de-área. Está um pouco mais gordo, mas ainda brinca na terra batida. “Olha, para entrar no Hang tinha que jogar muita bola.”
“Vem comer pipoca” – A bola branca bate firme na azul a caminho da caçapa. Richard Monteiro de Souza, 26 anos, zagueiro no Hang, diverte-se na birosca do Jadir, à margem do campo. Ali ao lado, há pouco mais de dez anos, dona Vanda aproximava-se da grade e gritava ao neto, que já começava a jogar como centroavante: “Pipoca! Vem comer pipoca!” Não demorou para que Adriano fosse apelidado de Pipoca entre os amigos. “Ser amigo dele hoje, depois do sucesso na Itália e na Seleção, é fácil”, diz Richard. “Conviver com o passado do Adriano é que é duro, e nós estamos aqui para mostrar que a história dele foi sempre complicada, mas digna.” Richard é torcedor do Flamengo – “ó, põe aí que não foi por causa do Adriano, não, já torcia antes.” Trabalha como agente de segurança (R$ 800 por mês), quase sempre à noite. Nas horas vagas, vai ao bilhar ou fica diante do aparelho de tevê, no videogame Play Station. “No joystick, gosto de brincar de Adriano.”
Drible no bueiro – Adriano nasceu e tocou em uma bola pela primeira vez na rua Sebastião da Silva. Em sua casa moravam 25 pessoas. Ela ainda existe, foi cedida a outra família. Parece manter-se de pé por força das dezenas de fios elétricos – os “gatos” – que dela saem. Os primeiros rachões foram ali mesmo, entre um torneio de bola de gude e o empinar de pipas. Havia, e ainda há, uma tampa de bueiro cinco centímetros acima do chão. Ela nunca atrapalhou o futebol. “O jeito era driblar a tampa”, lembra Jorge Francisco da Silva Filho, atacante do Hang. Amigo de infância de Adriano, está desempregado. Na carteira de trabalho, aparece como auxiliar de perecíveis. Vive com a mulher e três filhos (Wallace, William e Tainá) em um quarto de três metros por dois metros. A ampará-los, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em cima do aparelho de tevê e, claro, uma flâmula do Flamengo. A geladeira está vazia. Até 2001, Jorge nunca tinha saído do Rio de Janeiro, nunca tinha deixado as quebradas da Sebastião da Silva. Naquele ano, andou de avião pela primeira vez. A convite de Adriano, ficou três meses em Milão. “Tudo pago por ele, que não deixa a gente pôr a mão no bolso”, ri. “Quando o Adriano vem para a Vila Cruzeiro, aí é nossa vez de pagar, mas precisamos enganá-lo para conseguir.” Vanderlei Leite, tio de Adriano, irmão de sua mãe, o único parente do centroavante de Parreira a permanecer na Vila Cruzeiro, educadamente interrompe a conversa e pede a Jorge que mostre uma camisa no armário. Lá vai Jorge. “Desculpe, está mofada porque ficou muito tempo guardada.” É uma original do Parma, o primeiro clube italiano de Adriano. “Tá vendo? Tem as cores do Hang.”
• O tio Vanderlei deixou a Vila Cruzeiro
na semana passada. Há meses construía,
com a ajuda de Adriano, uma casa em Pedra
de Guaratiba, na região oeste do Rio de
Janeiro. Pretendia mudar-se apenas depois
da Copa do Mundo. Foi obrigado a acelerar
a transferência. O traficante Jaime Evaristo
da Silva, de 26 anos, apontado como chefe
da venda de drogas no morro, morreu em confronto com a polícia, na porta de uma das delegacias da região. Jaime tinha sido preso com outro acusado. Quando eram levados à cela, reagiram. O policial foi baleado. O comparsa conseguiu fugir. Com medo, o comércio honesto e humilde da Vila Cruzeiro, ao redor do campo de futebol, fechou as portas.
• O jovem de boné branco que aparece ao
lado de Adriano na formação do Hang não poderá acompanhar a Copa do Mundo pela televisão. Morreu há algumas semanas. É o
Fino, supostamente vingado em um acerto
da guerra do tráfico.