Ele corresponde exatamente à imagem que as pessoas fazem de um cientista: loquaz, agitado, muito falante e apaixonado pelo trabalho. Aos 62 anos, o físico Sylvio Goulart Rosa Filho, ex-presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae), dirige a Fundação ParqTec, a primeira “incubadora” (entidade criada para desenvolver pequenas empresas) do Brasil, localizada na cidade paulista de São Carlos. A maior das 234 incubadoras de empresas do Brasil, a ParqTec é a menina dos olhos de Rosa Filho. Com apenas 17 anos, a entidade promove e gerencia uma união de esforços entre universidades (USP e Universidade Federal de São Carlos, a UFscar), empresas e poder público que permitiu a transferência rápida de tecnologia para a produção, transformando a região num dos maiores pólos de tecnologia do País. Um dos principais resultados desses esforços foi o desenvolvimento do design de cerâmica de decoração, tornando o Brasil o terceiro maior exportador. Não é à  toa que algumas indústrias da região e até funcionários altamente qualificados de grandes empresas estão sendo atraídos para São Carlos. No mês passado, a cidade realizou a Oktobertec, um mês de tecnologia no qual se destaca a Feira de Alta Tecnologia (Fealtec). Em 2003, está prevista a inauguração do Science Park, que vai transformar a região numa megaincubadora capaz de acolher 56 empresas. Rosa  Filho está convencido de que o modelo gerido pela ParqTec – transferência rápida de tecnologia gerada nas universidades para a pequena empresa – é a maneira mais eficaz de o Brasil se inserir na economia globalizada. “A riqueza hoje é o conhecimento. Está na hora de criarmos um novo empresário. Não somos mais o país do futuro.
Isso é tarefa para uma ou duas gerações”, diz.

ISTOÉ – A Fundação ParqTec transformou São Carlos num pólo de alta tecnologia. Qual foi a origem dessa idéia de unir esforços entre universidade, empresas e poder público para transferir tecnologia à produção?
Sylvio Goulart Rosa Filho

A fundação foi criada em 1984 por iniciativa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para fazer a interação universidade-empresa, isto é, para promover o pólo de tecnologia de São Carlos, numa iniciativa do então presidente do CNPq, prof. Rynaldo Cavalcanti de Albuquerque. Foram criadas cinco dessas fundações: Campina Grande (PB), São Carlos (SP), Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O objetivo inicial era formar incubadoras de empresas. O prof. Rynaldo tinha visto que esse fenômeno se desenvolvia de maneira muito vigorosa na Europa, que seguia, com certo atraso, aliás, os EUA, e viu que o Brasil precisava tomar uma iniciativa e esta teria que ser resultado de políticas públicas. Assim o CNPq criou os mecanismos de produção de conhecimentos gerados na universidade para transferência para o setor produtivo via criação de empregos. A incubadora é um espaço físico, com estrutura de apoio às empresas nascentes, onde elas têm um ambiente amistoso no período de crescimento. É como um ser vivo. Tentamos produzir as condições ideais para que as empresas nascentes, que são muito frágeis, se desenvolvam. Os nossos empresários têm boa qualificação técnica, mas pouca tradição no conhecimento da gestão empresarial. Mesmo numa empresa de base tecnológica, o componente de gestão tem um peso fundamental; só tecnologia não garante o crescimento empresarial. Depois fornecemos recursos: no início, os candidatos a empresários têm projetos e idéias sobre quais serão os produtos, e a Fundação ParqTec fornece o laboratório para que eles possam desenvolvê-los e colocá-los no mercado. Esse esforço é apoiado por várias entidades como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o CNPq. O projeto cresceu tanto que 30% do Produto Interno Bruto (PIB) da cidade está ligado à ciência e tecnologia.

ISTOÉ – A concepção desse modelo é voltada para o pequeno empresário?
Sylvio Goulart Rosa Filho

O modelo desenvolvido aqui em São Carlos é a pequena empresa. Para nós, esse tipo de modelo é a maneira como o Brasil deve se inserir na economia mundial. Se não tivermos tecnologia nas empresas, não teremos poder de barganha. Tecnologia nas empresas significa produtos e serviços mais competitivos. Isso é uma condição necessária, mas não suficiente. Veja-se o exemplo dos agronegócios. O Brasil hoje se tornou o País mais competitivo do mundo neste setor porque juntou o empresariado moderno com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Fez-se uma revolução no campo. Para vencer todas as barreiras, necessita-se de tecnologia na empresa e de políticas públicas de “meter os cotovelos”, para abrir os mercados lá fora. Isso é o que todo mundo faz. E isso mostra que o Brasil pode ser competitivo, através da educação de qualidade acessível e da promoção de todos os mecanismos de transferência de tecnologia. A parte forte, aqui, está na universidade. Temos a USP, a UFScar e as duas Embrapas. Nosso forte são as ciências exatas – física, química, computação e engenharia de todas as variedades. Temos uma concentração muito grande de talentos qualificados: em cada 30 habitantes, uma pessoa faz pesquisa. Isso é o que faz a diferença. Temos na região de 100 a 120 empresas de base tecnológica, que formam o complexo do pólo tecnológico de São Carlos, no qual a Fundação ParqTec atua como articuladora. Nosso modelo indica como o Brasil pode deixar de ser pobre. Esse pólo foi uma ação de articulação política: construir um modelo de desenvolvimento baseado em educação de qualidade, democraticamente acessível, aberto, em que as pessoas se integrem nesse esforço. E valorizando o espírito empreendedor. Assim, trata-se de um processo de gerar tecnologia com o conhecimento nas universidades, estimular o empreendimento também nas universidades, criando-se “canais desenfartados” para transferir essa tecnologia.

ISTOÉ – Mas não se pode dizer que todas as idéias apresentadas pelos pretendentes a empresários empreendedores sejam boas…
Sylvio Goulart Rosa Filho

Aqui na fundação nunca dizemos não, mesmo que a idéia não seja tão boa. Dizemos: vamos estudar mais, elaborar um pouco. Estimulamos a pessoa a estudar mais, a melhorar a  percepção de seu produto para aperfeiçoá-lo, antes de se tornar empresário. Porque a história do Brasil sempre foi a história da  negação. Aqui tudo é desestimulado. A nossa idéia é justamente ter canais para quebrar esse círculo. Temos que dar oportunidade às pessoas de arriscar. Somos a incubadora mais antiga da América Latina. Tanto é assim que temos empresas que vêm de outras cidades para se beneficiar da nossa experiência.

ISTOÉ – Pode-se dizer que a locomotiva de São Carlos é a tecnologia de informação?
Sylvio Goulart Rosa Filho

Sim, é a mais frequente. As universidades daqui
são boas em engenharia de automação, física, química, engenharia
química, computação, engenharia de ciência dos materiais,
automação óptica. São Carlos hoje é o centro de óptica
de precisão mais importante do Brasil. Temos nove ou dez
pequenas de empresas óptica de precisão aqui.

ISTOÉ – Quais foram os principais setores em que a tecnologia desenvolvida através da ParqTec gerou frutos?
Sylvio Goulart Rosa Filho

Um dos mais importantes é a prototipia, permitindo
que pequenas empresas obtenham protótipos de seus produtos a
baixo custo para participar de concorrências. O outro foi a cerâmica
de decoração. Em termos gerais, nosso modelo foi baseado na experiência da Emiglia Romana, na Itália. Lá, no pós-guerra, foram criados vários mecanismos de associações de apoio a pequenas empresas. Elementos de modernização tecnológica, como laboratórios baseados nas universidades, auxiliaram a formação daquele complexo
de pequenas empresas. Os produtores se congregavam em cooperativas, associações e sindicatos. Para dar suporte a isso, foi criado um
centro de pesquisa para garantir a qualidade, padrão, denominação
de origem dos produtos. A região produz alimentos, madeiras,
móveis, tecidos, além de cerâmica de revestimento.

ISTOÉ – Como a tecnologia da cerâmica de decoração colocou o Brasil na vanguarda dessa atividade?
Sylvio Goulart Rosa Filho

Volto à experiência da Itália. Na região em volta de Bolonha, por causa da argila de lá, foi constituído um conglomerado de empresas de cerâmica. E aqui perto de São Carlos existe uma floração de argila de qualidade. Assim, nossas cerâmicas estão montadas literalmente em cima dessas lavras de argila. Não nos restringimos apenas às cerâmicas de tijolos e calhas. Aqui, todo esse setor foi modernizado, criamos laboratório e desenvolvemos a cerâmica de decoração, agregando uma identidade nacional ao produzir design próprio. E isso representa um valor agregado enorme. O Brasil se tornou o terceiro maior exportador mundial de cerâmica de decoração. Os principais produtores são China, Itália, Espanha e, agora, o Brasil.

ISTOÉ – Como é possível uma empresa de pequeno porte se tornar competitiva no mercado global?
Sylvio Goulart Rosa Filho

Veja o exemplo da Ferrari. Hoje, ela pertence à Fiat, mas surgiu como uma empresa familiar de Maranello. Todos os componentes dos carros eram feitos por pequenas empresas. Esse é um dos exemplos mais marcantes de que elas podem ser competitivas e entrar no mercado mundial. As empresas exportadoras de luvas na Itália são todas pequenas, mas têm padrões de qualidade, alta tecnologia, etc. Esse é o nosso modelo. Para viabilizá-lo, fizemos um estudo: qual era a oferta tecnológica desta região? O que temos de excelência em termos de professores, pesquisa, programas de graduação e pós-graduação? Fizemos um mapeamento da oferta tecnológica. Depois, um mapeamento da demanda das indústrias regionais. E aí, fizemos o cruzamento.

ISTOÉ – Grandes empresas, como a Volkswagen, a Embraer e a TAM estão na região de São Carlos. Esses conglomerados têm alguma participação no processo no pólo tecnológico?
Sylvio Goulart Rosa Filho

Elas também fazem parte desse “ecossistema”. A TAM, por exemplo, está nacionalizando os componentes de suas aeronaves
que antes ela comprava no Exterior. Uso a imagem do ganso para fazer o foie gras: temos que alimentar a pequena empresa da mesma maneira. Dando comida em intervalos curtos, com gestão administrativa, modernização tecnológica. Afinal, o empresário tem que renovar os produtos, senão a empresa fica tecnologicamente envelhecida. E,  em terceiro lugar, é necessário injetar recursos.

ISTOÉ – Como obter recursos num momento de crise?
Sylvio Goulart Rosa Filho

Na fase inicial, são recursos do próprio candidato a empresário, amigos, familiares, etc. Mas aqui, na ParqTec, ele terá uma sala, telefone, internet, sala de reunião, sala de treinamento. É como no cinema novo: uma idéia na cabeça, uma câmera na mão. O candidato a empresário vem e desenvolve sua idéia com o apoio da fundação. No começo, entramos mais com suporte administrativo. Depois existem linhas de apoio, como a da Fapesp. O empresário pode ganhar bolsa se o projeto for aprovado. Temos também feiras de tecnologia, como a Oktobertec, que mostram as atividades tecnológicas da região e dão visibilidade a essas empresas e às tecnologias por elas desenvolvidas.

ISTOÉ – A participação do poder público é independente da cor política do governo que ocupa a prefeitura?
Sylvio Goulart Rosa Filho

O pólo tecnológico é resultado de ações políticas da comunidade nos últimos 50 anos. A vinda da USP para cá foi uma mobilização para se trazer a escola de engenharia. A  prefeitura doou o terreno. Houve ainda a mobilização para trazer a Universidade Federal, a primeira federal de São Paulo. O município também doou terreno onde está instalada a federal. Eu diria que essa vocação faz parte da cultura da cidade.

ISTOÉ – O Brasil tem uma política industrial coerente?
Sylvio Goulart Rosa Filho

O Brasil teria que ter uma política pública de nacionalização de tecnologia. Um governo normal não pode fazer escolhas baseado apenas em critérios econômicos, tem que ter uma política industrial. A Petrobras, em vez de desenvolver tecnologia de plataforma aqui, encomenda lá fora, na Noruega e em Cingapura. Se o custo de fabricação for maior aqui, o governo deveria entrar com a diferença. No caso da Embraer, também. Mesmo que esse avião que eles oferecem à FAB (o Mirage 2000-5, em consórcio com a Dassault, com transferência de tecnologia) não seja tão bom, o Brasil deveria optar pelo desenvolvimento tecnológico. É uma questão de política. Senão
o País ficará sempre exportando sapato, suco de laranja e soja.
Hoje nós não temos o poder de fazer preços. Como se sentar
à mesa onde é discutida a divisão da riqueza no mundo? Uma
condição é tecnologia própria. Precisamos insistir nesse caminho.

ISTOÉ – Mas será que a globalização deixa alternativas? A própria Ferrari, que o sr. citou como um exemplo de pequena empresa que se viabilizou, acabou comprada pela Fiat, a gigante italiana automobilística…
Sylvio Goulart Rosa Filho

O que ocorre com o Brasil é que perdemos os controles da economia, não estamos no comando dos botões. Por que isso? Na história do Brasil, o rico sempre roubou do pobre, desmatou, poluiu, enfim, dilapidou a natureza. Foram 300 anos de regime escravocrata que produziram uma elite de baixa categoria, totalmente descomprometida com o futuro do País. Aliás, nem sequer com o futuro da própria família: o que o pai roubava, o filho desperdiçava e o neto precisava roubar novamente. Não é como aconteceu na Inglaterra, onde a elite, no início, roubou, mas depois de um tempo se saciou. Criou-se a normalidade e o estupro parou. No Brasil, o estupro continua. O País não é aceito na mesa de negociação dos grandes porque não tem credenciais para tanto. Uma das razões é a baixa tecnologia. Veja-se a Índia, que desenvolve muita tecnologia. Outra questão brasileira é a miséria, a desigualdade. Não temos mais tempo, o Brasil não é mais o país do futuro. A mudança é tarefa de uma ou duas gerações. A riqueza hoje é o conhecimento. Precisamos criar confiança, auto-estima, empresários que sabem que vão vencer porque têm conhecimento. Nada a ver com arrogância. O modelo de capital e tecnologia desenvolvido na ParqTec é uma tentativa de abandonar essa herança do escravagismo.