21/11/2002 - 10:00
A pouco mais de 40 dias de tomar posse na Presidência, o PT já começou a governar. A equipe de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e seus líderes no Congresso descobriram que poderão utilizar em seus programas sociais mais de R$ 26,7 bilhões do dinheiro do Orçamento da União para 2003 e de recursos engavetados em fundos constitucionais. A composição informal desses recursos já está sendo feita pelos petistas e aliados do governo Lula, antes mesmo da aprovação do Orçamento do próximo ano. Vai ter dinheiro até para pagar o salário mínimo de R$ 240 a partir de maio e bancar os dois programas sociais prioritários para o governo Lula – o Fome Zero e o Bolsa Escola. Esses recursos extras “descobertos”
no subsolo da burocracia federal equivalem a menos de 10% do Orçamento de 2003 que vai pagar o custeio da máquina pública,
os salários de servidores, os investimentos em infra-estrutura e
as dívidas externa e interna do governo federal.
Dos R$ 26,7 bilhões garimpados, R$ 15 bilhões vão brotar da arrecadação extraordinária prevista pela Receita Federal para o próximo ano. Este ano a receita chegará a R$ 20,3 bilhões. Os petistas também descobriram que outros R$ 9 bilhões do Orçamento resultarão do reajuste das receitas de impostos arrecadados pela União em razão da inflação entre agosto – quando o Orçamento foi elaborado – e dezembro. A manutenção da alíquota de 27,5% do Imposto de Renda da Pessoa Física vai gerar R$ 1,7 bilhão e outros R$ 700 milhões surgirão com o corte de alguns investimentos. O PT também já descobriu que pode economizar mais R$ 300 milhões cortando despesas de manutenção dos ministérios.
Com a inflação, todas as estimativas de receita e despesas terão que ser reajustadas no Orçamento. O que daria uma margem de manobra de R$ 12 bilhões. Mas, como a inflação também corrige as despesas, o saldo líquido será de R$ 3 bilhões. Por ironia da história, a maior parte deste dinheiro extra (R$ 9 bilhões) “descoberto” pelo comitê de receitas da Comissão de Orçamento do Congresso apareceu graças a dois alvos tradicionais de críticas do PT: o crescimento da inflação – que começou em agosto quando o orçamento inicial foi elaborado – e a disparada do dólar a partir do início da campanha eleitoral. “Não se deve contar com recursos inflacionários. Não podemos aumentar o salário mínimo porque a inflação reajustou a arrecadação”, pondera o presidente do PT, deputado José Dirceu (SP). A inflação aumenta a arrecadação porque obriga as empresas a reajustar preços, aumentando em consequência o faturamento e o pagamento de impostos, a maioria deles indexada ao crescimento do valor das vendas.
Menos despesas – Mas somente parte dessas despesas será também reajustada. Entre o que fica congelado estão os salários dos servidores públicos, que devem permanecer nos atuais níveis, pelo menos até o primeiro semestre. Outra ironia do destino: os atuais deputados do PT e de partidos que apoiaram a coligação de Lula na eleição presidencial estão rejeitando ou tentando adiar ao máximo a votação de medidas provisórias que aumentam as despesas com funcionalismo. Até mesmo aquelas que os petistas defendiam há poucos meses. Isso ocorreu na terça-feira 12 na votação de cinco MPs que criavam 6.350 cargos na Polícia Federal, 1.400 empregos de auditor no INSS, 400 postos de especialistas em supervisão e avaliação no Ministério da Saúde e outro tanto em diversos cargos da União, totalizando mais de oito mil vagas congeladas. “Precisamos ter certeza das despesas para depois pensarmos quanto do Orçamento poderemos destinar aos salários dos servidores”, diz o deputado Jorge Bittar (RJ), encarregado pelo PT de ajustar o Orçamento de 2003.
Linha dura – Algumas outras despesas com pessoal também foram rejeitadas, entre elas as gratificações para funções na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e o aumento de 20%
para funções comissionadas e outras gratificações dos funcionários do Banco
Central, o que implicaria despesas na previdência do setor público a médio prazo. Também não estão indexados alguns contratos, a exemplo dos de manutenção dos prédios públicos que vencerão ao longo do próximo ano, e não há previsão de revisão dos preços para eles. A garimpagem por dinheiro para os programas sociais conta com a boa vontade da Comissão de Orçamento do Congresso, que se reuniu várias vezes na semana passada. “Vamos ajudar no que for preciso”, anuncia o presidente da comissão, deputado José Carlos Aleluia (PFL-BA). “O orçamento de 2003 é um instrumento do novo governo. E eu vou ajudar”, emenda o relator da comissão, senador Sérgio Machado (PMDB-CE). “A margem de manobra é mínima, mas existe. A maioria das despesas já está vinculada, mas sempre é possível uma realocação de recursos por setor”, diz o senador, que recebeu nesta quinta-feira 14 os números finais da Receita Federal.
Os petistas também apostam na arrecadação suplementar de R$ 15ss bilhões em 2003, com o fim de inúmeros processos judiciais de cobrança de impostos, os programas de refinanciamento de devedores e até mesmo de cobranças pela própria Receita Federal. Essas informações estratégicas, mantidas a sete chaves na Receita Federal, começam a vazar com o diagnóstico da máquina federal pela equipe de transição de Lula. Ao entrar na contabilidade do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), por exemplo, os petistas descobriram que R$ 5 bilhões do dinheiro resultaram, este ano, somente de aplicações financeiras do fundo feitas pelo BNDES. “Este dinheiro não pode ser eternamente aplicado no mercado financeiro. Tem que gerar emprego”, argumentou o deputado Aloizio Mercadante (SP), senador eleito. Outros R$ 18 bilhões sairão
do programa de Integração Social (PIS), fundo administrado pelo BNDES. Os técnicos do PT prospectaram mais R$ 2,6 bilhões do Fundo de Universalização do Serviço de Telecomunicações (Fust) escondidos
pela equipe econômica nas contas do Tesouro Nacional e não
previstos na proposta orçamentária.
Truque – Garimpar o dinheiro público escamoteado em balancetes e peças orçamentárias quase enigmáticas passou a ser ação política preferencial do novo governo. O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) esbarrou em R$ 18 bilhões do Programa de Integração Social (PIS) camuflados no balanço BNDES, que estão sendo usados pela equipe econômica para aplicação no mercado financeiro. Com esse truque, seus resultados são contabilizados para efeitos de superávit primário e financiamento de empresas. Miro vai apresentar projeto de lei direcionando esses recursos para obras de infra-estrutura de saneamento básico. “Este dinheiro será usado para instalar esgotos e rede hidráulica nas casas dos pobres. Servirá para gerar imediatamente milhares de empregos”, argumenta o líder do PDT na Câmara. O Orçamento continua sendo uma “caixa-preta” que, pouco a pouco, começa a ser destampada. O deputado Sérgio Miranda (PCdoB-MG) desvendou um mistério que poderia implicar mais dinheiro para o social. Ao elaborar o orçamento para o próximo ano, a equipe econômica de FHC transferiu para a reserva de contingência do Orçamento de 2003 79,1% do Fust e 47,4% do Funttel, o Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico para as Telecomunicações. O dinheiro desses fundos deveria ser investido em informatização de escolas públicas, por exemplo, mas o governo preferiu fazer caixa.
O PT também conseguiu a ajuda de atuais e futuros aliados. Foram encontrados buracos em rubricas de investimento pavimentadas por emendas de deputados do chamado “Partido Rodoviário”, aquele interessado apenas em construir ou remendar estradas federais. As emendas do lobby previstas no Orçamento chegam a R$ 7 bilhões. O corte nessas emendas deve chegar a R$ 2,5 bilhões, que serão realocados para programas sociais. A boa notícia, nisso tudo, é que o PT mostra, antes mesmo de assumir, que não caiu na fácil tentação de fabricar dinheiro, preferindo a responsabilidade fiscal.
O dilema do mínimo
Nadando de braçadas num volumoso capital eleitoral e contando com uma alta taxa de tolerância, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva passará, no começo de 2003, pelo seu primeiro teste de popularidade: o reajuste do salário mínimo. As esperanças geradas pelas promessas de campanha têm data de validade. “O teste-símbolo deverá ocorrer quando for anunciado o porcentual do mínimo”, avalia o cientista político Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Ninguém espera que o novo governo dobre o atual valor numa canetada, mas, ao anunciar o reajuste, Lula estará, pela primeira vez, no papel de vidraça. “Se o governo não der a atenção devida a essa questão, vai perder o trem da história”, alerta o deputado federal Paulo Paim (PT), senador eleito, que há 16 anos carrega a bandeira da recuperação do poder aquisitivo do mínimo.
A questão salarial começou a pegar fogo na terça-feira 12, e o PT saiu vitorioso no primeiro embate. O Senado confirmou a decisão da Câmara e rejeitou a concessão de reajustes aos servidores. As demandas salariais reprimidas foram empurradas para 2003. Mas o futuro governo não escapa das pressões externas e internas para discutir já o tema. A equipe de transição, com Antônio Palocci à frente, evita se comprometer com o reajuste de R$ 240. “Ninguém está proibido de ser otimista, mas é preciso ter consistência na projeção da receita”, foi o recado que Palocci mandou aos parlamentares que defendem um valor superior a R$ 211.
O presidente do PT, José Dirceu, foi mais objetivo. Ele descartou o aumento caso os recursos para bancá-lo fossem provenientes da correção do Orçamento. “Vamos dizer ao País e ao mundo que contamos com recursos inflacionários para aumentar o salário mínimo?” Apesar de a Comissão Mista do Orçamento ter reservado R$ 3,5 bilhões para garantir o reajuste para R$ 240, o novo governo já anunciou que a prioridade será o Fome Zero, que deverá comprometer boa parte dessa quantia. O comando petista vai precisar de muito jogo de cintura para enfrentar as pressões. “Não acredito que o PT votará contra minha proposta”, revolta-se Paim, autor do projeto que estabelece o novo valor.
“Lula tem a obrigação histórica de comprometer-se com uma política de valorização do salário mínimo”, analisa o diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), Sérgio Mendonça. Ele admite a possibilidade de, no primeiro ano, o novo governo não poder pagar R$ 240. “Mas é preciso sinalizar que é uma prioridade”, afirma. Em outubro, o Dieese constatou que, para atender às necessidades básicas, um trabalhador deveria receber R$ 1.270,40, ou seja, 6,3 vezes mais que o piso atual de R$ 200. Apesar da depreciação sofrida ao longo dos anos, 20% dos brasileiros ainda dependem do mínimo para viver. Lula tem nas mãos algo mais que uma simples questão de orçamento. No imaginário popular, o mínimo ainda é a referência nacional de remuneração, como há 62 anos, quando Getúlio Vargas sancionou a lei que o criou.
Liana Melo