02/08/2002 - 10:00
Para os alunos, a volta às aulas é a chance de reencontrar amigos, conhecer gente nova e hora também de começar a se preocupar com as notas. Para os professores, o regresso ao trabalho não representa nada de novo. Os problemas dos 2,3 milhões de profissionais do ensino fundamental e médio do País são os mesmos de sempre. Na rede pública, são ameaçados de morte, desrespeitados e se defrontam com estupros, invasões, uso de armas, explosão de bombas, falta de material e prédios malcuidados. Na rede privada a vida é mais amena, mas isso não quer dizer que estejam livres de jornada em duas ou três escolas, acúmulo de trabalho, cobrança de alunos e pais mal educados. Uma recente pesquisa feita em 14 Estados brasileiros pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) traça um triste retrato da situação. Foram ouvidos 33 mil estudantes do ensino fundamental e médio, três mil professores e dez mil pais. O estudo, que resultou no livro Violência nas escolas, mostra que a falta de segurança é o fator que mais aterroriza. Uma das conclusões revela que a violência contra o professor acontece principalmente por motivos disciplinares, notas baixas e pelo nível de exigência imposto pelo educador.
Patricia Madera, 33 anos, professora do ensino fundamental
de escola pública em Brasília (DF).
“Dou aulas para uma classe de 36 estudantes das 7h30 às 12h30, e após esse horário faço planejamento de aulas, na escola. Tenho uma filha de dez anos e não consigo acompanhar seus estudos. Chego em casa cansada e só penso em dormir. Fico 24 horas ligada ao meu trabalho. Nos últimos três anos me afastei duas vezes da escola por motivo de saúde. Os sintomas foram: falta de ar, fadiga e dor no coração, diagnosticado como um quadro de stress. Recentemente, comecei a sentir fortes dores de garganta e os exames acusaram calo nas cordas vocais. Hoje, tenho que falar um tom mais baixo que o
normal para não agravar a situação”
Pedir para um aluno prestar atenção na aula pode se transformar em ameaça de morte. Esse foi o caso da professora paulista E. M. “Falei para um aluno parar de atrapalhar a aula e, como resposta, ele disse que iria me ‘acertar’”, relata. Assustada, ela ficou seis meses sem ir à escola. Voltou a dar aulas, mas sofre de depressão e síndrome do pânico. O clima de terror vivido por professores e estudantes é agravado porque, segundo a pesquisa, 4% dos alunos vão às salas armados. “Calcula-se que 200 mil estudantes brasileiros entram armados na escola”, alerta a socióloga Míriam Abramovay, umas das coordenadoras da pesquisa. No Rio de Janeiro, R. F., 51 anos, sofreu ameaças após reprovar um aluno de 17 anos, em dezembro de 2001. “Ele me xingou e tentou me encurralar na parede, dizendo que iria me matar.” No dia seguinte, o aluno voltou à escola com dois amigos, armado com um revólver 38. Sem saída, R. F teve de ser transferida para outra escola.
Outro estudo feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) revela que a droga está presente em 32% das escolas brasileiras. O índice de agressão física entre alunos, professores e funcionários sobe para 47% nas unidades com registro de consumo de entorpecentes, contra 24% nas demais. Para tentar controlar o clima de terror nas escolas estaduais de São Paulo, o governador Geraldo Alckmin lançou um pacote com inúmeras medidas de combate à violência. Entre elas, a instalação de câmeras de vídeo e alarmes em mais de duas mil escolas; a contratação de dois mil vigias; e o deslocamento de viaturas para o patrulhamento escolar.“Em qualquer outro país, crimes contra educadores mobilizariam toda a sociedade, principalmente as autoridades”, indigna-se Norman Gall, do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, organização que estuda os problemas sociais no País.
M.C, 24 anos, professora de ciências e biologia em um colégio estadual em Itaquaquecetuba, Grande São Paulo
“O colégio onde dou aula fica em uma região muito pobre, esquecida. O povo dali não tem perspectiva. Muitos pegam a mão de via única chamada violência. No ano passado mataram uma pessoa em frente à escola. Algumas alunas denunciaram o assassino. Os traficantes ameaçaram invadir o colégio. Procuramos a polícia, organizamos passeatas. Em decorrência disso sofri ameaças. Meu carro foi apedrejado. Mas não posso e não vou desistir. A escola é o último fio de esperança para essa gente”
No ano passado, o órgão convidou a estudante Sandra da Luz Silva, 18 anos, a relatar seu dia a dia na escola pública onde estuda, periferia de São Paulo. Em seu diário, a estudante revela como os esforços em busca de melhoria são minados por coisas triviais, como a falta de uma tomada elétrica. Ou, em casos extremos, pela explosão de bombas no pátio. Nesse quadro, o desrespeito a professores e funcionários não poderia faltar. “Alguns alunos nem tomam conhecimento da presença do professor. Entram e saem quando querem, não prestam atenção, xingam e até os ameaçam”, conta ela.
Fatos como esse levam a categoria a ser considerada uma das mais estressadas do País. Ocupa o quarto lugar no ranking da International Stress Management Association – Brazil; atrás apenas de policiais e seguranças, profissionais de atendimento ao consumidor e operadores de vôo. “O professor canaliza as angústias e a ansiedade dos alunos. Assumem tarefas alheias as suas atribuições, como a segurança da classe”, diz a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da entidade e coordenadora do trabalho. Sinais do distúrbio também foram registrados em pesquisa concluída em abril pelo psiquiatra Augusto Cury, de Ribeirão Preto. De 980 professores ouvidos em 200 escolas de ensino médio e fundamental de São Paulo e Curitiba, 92% apresentam sintomas como transtornos do sono, ansiedade, cefaléia, falta de concentração, perda de memória, descontrole emocional e fadiga excessiva.
O assunto preocupa tanto que virou até tema de livro. Educação: carinho e trabalho, lançado pela CNTE, aborda os problemas de saúde que afligem o professorado. De acordo com a publicação, de 52 mil educadores do País, 25% sofrem de síndrome de Burnout (do inglês, destruição pelo fogo), patologia caracterizada por exaustão emocional, despersonalização e falta de realização pessoal. O diagnóstico foi feito pelo Departamento de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (Unb). “A pessoa perde o sentido de sua relação com o trabalho e a identidade profissional. Qualquer esforço lhe parece inútil”, explica Teresa Leitão, diretora da CNTE e coordenadora do livro. Para ela, as causas do mal são estruturais. As escolas públicas estão mal aparelhadas, não há coordenação efetiva para apoiar os professores e faltam respeito e segurança em sala.
Iracilda Régis Batista, 34 anos, professora de
ensino básico do 13 de Maio, colégio encravado
no meio da selva amazônica, no Pará
“A distância é o nosso maior desafio. As estradas são ruins, muitos meninos têm que atravessar igarapés para ir à escola. Apesar disso, não desanimam. Chegam empolgados, com muita vontade de aprender. O sistema de classes multisseriadas é outro sério problema. É complicado ter que dar a mesma aula para crianças de 1ª e 4ª série. Mas não há dificuldade que tire o meu desejo de ensinar. É comovente ver uma criança tão pobre trazer uma frutinha de presente para a sua professora”
Apesar de ter mais apoio e infra-estrutura, o professor da iniciativa privada também leva angústias para casa. Para manter um bom padrão de vida, dificilmente se limita a trabalhar numa única escola. Resultado: acumula turnos e funções. Para completar, as relações na escola mudaram. Hoje, o professor deve estar aberto a ouvir seus alunos e estimulá-los a aprender e não a impor conhecimentos. “Isso é positivo, mas exige mais de quem seria a ‘autoridade’. Estamos num momento de transição. E o professor nem sempre está preparado para o confronto em sala de aula”, analisa a professora de filosofia Maria Lúcia Arruda Aranha, de São Paulo.
Há também a discussão do fato de a escola assumir papéis que, em tese, deveriam ser da família, como o estabelecimento de limites na educação e o senso de certo e errado. Nos últimos anos, os colégios retomaram a função de discutir temas como ética e cidadania. Esse processo leva o professor à maior exposição de si e de sua própria formação. Somados, esses fatores aumentam o quadro de exigências do educador. Algumas instituições particulares perceberam o risco de ter um professor estressado. É o caso do Pueri Domus, de São Paulo. O colégio de primeiro e segundo grau mantém convênio pedagógico com 120 escolas particulares em 18 Estados. Oferece aos educadores oficinas e cursos anti-stress. “Nossa linha de frente é o professor e ele tem que responder a expectativas da escola e dos pais. É estimulado, mas também muito cobrado”, resume a pedagoga Eloisa Ponzio, coordenadora de formação de professores da rede.
Além dos esgotados, que driblam a competitividade e a violência, o professorado no Brasil tem outros heróis. Iracilda Régis Batista é um exemplo. Ela anda cinco quilômetros por dia para chegar à escola 13 de Maio, encravada no meio da floresta amazônica paraense. Nem a distância, as classes multisseriadas, na qual alunos de primeira e de quarta série dividem o mesmo espaço, e o embate com a pobreza são capazes de diminuir sua fé. “Nada se compara ao prazer de colocar um pouco de sonho e esperança na vida de uma pessoa”, diz. É de gente como ela que este país precisa.
Colaboraram: Eduardo Hollanda (DF) e Marcos Pernambuco (RJ)