01/02/2003 - 10:00
Um cartaz chama a atenção de quem visita o prédio do departamento de história da Universidade de São Paulo. Escrito em letras coloridas, um velho ditado popular: “Escreveu, não leu, o pau comeu.” A frase se dirige à chefe do departamento, Zilda Grícoli Iokoi, 55 anos, alvo de críticas na imprensa desde o dia 31 de março. Naquela edição da Folha de S. Paulo, a coluna do jornalista Elio Gaspari listou pela primeira vez 14 erros encontrados em um dos livros de Zilda, O Brasil atual e a mundialização (Edições Loyola, 1997), quinto volume da coleção paradidática História temática retrospectiva. No livro, os nomes do senador americano McCarthy e do ex-presidente Eisenhower foram grafados McArthur e Eisenhauer e a anistia política aparece como se tivesse sido assinada em 1988 (o correto é 1979). Estes erros não impediram que a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo indicasse a obra para um concurso de admissão de professores.
Assim que leu a coluna, Zilda colocou o cargo de chefe à disposição do departamento – o que foi recusado pelos colegas – e acertou com a editora o recolhimento da publicação. O episódio mostrou o perigo que livros mal revisados trazem para a formação do aluno e os critérios duvidosos que movem as instituições responsáveis por zelar por sua qualidade. De volta à rotina, Zilda ainda não se refez do “linchamento público” de que foi vítima, como gosta de dizer. “É moda bater nos professores. Não precisava chamá-los de idiotas”, repreende.
ISTOÉ – Como surgiu a coleção História temática retrospectiva?
Zilda Iokoi – Percebemos que um dos maiores obstáculos para o ensino de história era o racismo. Na rede pública, os negros são considerados baderneiros, enquanto os descendentes de imigrantes são vistos como detentores de cultura. Estudamos os negros, os índios, os movimentos sociais e a conquista dos direitos e fizemos quatro livros. O quinto, O Brasil atual e a mundialização, seria a síntese e eu me encarreguei de escrevê-lo. Em vez de apresentar a história cronológica do Brasil, traz uma análise da influência no País dos acontecimentos internacionais.
ISTOÉ – Traçar a história a partir dos movimentos sociais é positivo?
Zilda – Este é o modelo da nova historiografia, desenvolvida sob uma concepção marxista. Não devemos estudar o passado pelo passado nem simplesmente apresentar informações. A base da história está nos movimentos sociais. Não foram os parlamentares que incentivaram a assinatura da Lei Áurea. A abolição da escravatura nasceu de uma luta popular que obrigou o governo a criar a curadoria dos negros e deu a eles muitos ganhos de causa. Esta forma de trabalhar a história tem uma proposta política: dar à população da periferia uma expectativa de futuro. Não dá para estudar o governo Fernando Henrique sem estudar o MST. Ele só assenta gente porque existe um movimento social pressionando.
ISTOÉ – A maioria dos livros didáticos de hoje faz isso?
Zilda – A maioria ainda segue a história do ponto de vista das elites. Inovar é muito difícil. A indústria de livros didáticos é poderosíssima. Para muitos autores, é mais cômodo agradar ao Ministério. Alguns vendem um milhão de livros quando indicados. Mas os parâmetros curriculares estão cada vez mais positivos. Promover conexões com diferentes áreas do conhecimento é uma de suas propostas. Elio Gaspari cismou com um trecho do livro em que afirmo que Gláuber Rocha era mais tolerante com os militares do que com a esquerda. Ele fez uma revolução no cinema, mas demonstrava simpatia pelo projeto militar, principalmente por Geisel. E achava que a esquerda fazia patrulha ideológica.
ISTOÉ – Como aconteceram os erros?
Zilda – Ainda estávamos escrevendo quando as Edições Loyola toparam publicar os livros e estipularam um prazo curto para entrega. Tive de me debruçar sobre os outros quatro e o meu ficou sem revisão. Na hora de editar, muita coisa foi cortada e os erros apareceram. Foi uma maldita infelicidade. Tenho 30 anos de atividade e já escrevi 500 coisas. Notei que havia problemas assim que o livro saiu. Íamos corrigir para a segunda edição, mas a Secretaria da Educação indicou o livro como bibliografia para um concurso de ingresso de professores e mais de dois mil livros foram comprados.
ISTOÉ – Por que a editora preferiu vender os livros assim mesmo?
Zilda – Não sei. Denota, talvez, uma certa inexperiência do grupo. A Loyola foi muito positiva, mas, em determinado momento, permitiu falhas.
ISTOÉ – Como Gaspari soube?
Zilda – Alguém deve ter sugerido a pauta. Vamos supor que ele tenha espontaneamente resolvido ler um paradidático. Normalmente, quando os leitores percebem erros, escrevem para a editora. Ele preferiu produzir um artigo, fazendo dos erros uma campanha, que seria muito positiva se realmente contribuísse para melhorar a avaliação dos materiais de ensino, o que é necessário. Eu estava em um congresso nos Estados Unidos e soube da coluna lá. Fiquei incomodada por ele promover um linchamento público sem avaliar o conjunto da obra.
ISTOÉ – A sra. não acha justo que ele questione a escolha de um livro com erros para um concurso?
Zilda – Deveria perguntar para a comissão o motivo da escolha. Cada livro tem um problema. Um é muito factual, outro é abstrato. Mas não precisava chamar os professores de idiotas. É moda bater neles. O artigo de Gaspari desqualificou toda a rede pública.
ISTOÉ – Qual foi sua atitude após ler o texto?
Zilda – Ainda dos Estados Unidos, liguei para o diretor da faculdade e coloquei meu cargo à disposição. Ele não aceitou. Discutimos o assunto em plenária e novamente abri mão da chefia. Os professores recusaram e redigiram um documento manifestando confiança na minha integridade. Até os alunos, com quem travo constantes conflitos por conta de temas como a proibição de bebida alcoólica no departamento, demonstraram repúdio ao tratamento dado ao caso.
ISTOÉ – Na faculdade há uma faixa com a frase “Escreveu, não leu, o pau comeu”.
Zilda – Esta foi uma minoria na plenária realizada pelos estudantes. Em nenhum momento eles foram tolerantes comigo dizendo que podia haver erros. Mas, na assembléia, houve 80 votos de apoio e 20 contrários.
ISTOÉ – A sra. nunca notou um erro em um livro e teve o impulso de chamar o autor de estúpido?
Zilda – Estúpido é o autor que não consegue formular uma proposta. No curso de história, a gente aprende a ler todos os autores para descobrir os pontos com os quais concordamos ou discordamos. Os adversários nos ensinam a argumentar. No meu tempo, tínhamos o vício de não ler os adversários. Eu leio Gaspari.