02/08/2002 - 10:00
Não é português, nem italiano, nem sueco. Trata-se do esperanto, aquele idioma que os Titãs, na música Miséria, dizem que ninguém sabe falar. Não é bem assim. Cerca de dez milhões de pessoas no mundo praticam a língua, criada há 115 anos por Lázaro Ludoviko Zamenhof, um polonês que ousou sonhar com a globalização das palavras. Até o dia 10 de agosto, esperantistas de todo o mundo desembarcam em Fortaleza para o 87º Congresso Mundial de Esperanto – ou, como eles preferem, Universala Kongreso de Esperanto. Pela primeira vez, o País entra na rota oficial do evento, normalmente realizado na Europa. Todo ano, centenas de pessoas vindas dos quatro cantos do planeta dedicam uma semana a colocar em prática o ideal de Zamenhof. Este ano, foi escolhida a capital do Ceará. Aproveitando a oportunidade, a Associação Mundial da Juventude Esperantista trouxe para o Brasil a 58ª edição da versão jovem do congresso. Entre 21 e 26 de julho, 100 representantes de 22 países levaram seu curioso vocabulário às ruas de Pato Branco, um município de 60 mil habitantes no interior do Paraná.
Nada de torre de babel. Como se ocorresse o milagre da comunicação, esperantistas de todo o mundo cumpriram em Pato Branco um extenso programa de festas, cursos, gincanas e atividades culturais como se tivessem nascido no mesmo bairro. A japonesa falava com o alemão, que respondia para a haitiana, que se divertia com a francesa, que fofocava com o americano, que debatia com a israelense, que abraçava o dinamarquês, que fazia todo mundo rir. Cada um conheceu o esperanto de um jeito. Filha de pai britânico e mãe holandesa, a inglesa Petra Fantom, 19 anos, fala esperanto desde o berço. “Era comum meus pais conversarem entre si em esperanto. Acho que só fui aprender inglês mais tarde”, arrisca ela. “Descobri o esperanto por acaso”, confessa o nicaraguense Eddy Silva Molina, 24 anos. “Entrei em uma casa que pensava ser uma embaixada para pedir selos para minha coleção. Sugeriram que eu aprendesse esperanto para me comunicar com o mundo inteiro e conseguir selos dos mais diversos países. Gostei da idéia”, conta.
Quando o esperanto foi criado, em 1887, a língua inglesa não gozava da confortável situação em que se encontra hoje. Poliglota, Lázaro Zamenhof propôs um idioma universal que fosse neutro e de fácil pronúncia, batizando-o de esperanto, “aquele que espera”. Para isso, recolheu os mais significativos radicais de diferentes origens. Calcula-se que 60% deles venham do latim, enquanto 30% tenham raízes anglo-saxãs. Isso torna o esperanto o mais democrático dos idiomas, capaz de se disseminar pelo planeta sem conferir a nenhum povo a égide da supremacia política ou econômica. “O esperanto é para fazer amigos, o inglês é para fazer dinheiro. Não gosto de ver o inglês na posição de idioma universal. Isso não torna as pessoas mais próximas porque não é desejado, é imposto”, defende Neil Blonstein, um engajado habitante de Nova York presente ao congresso.
Diálogos – Hoje, um número de pessoas equivalente à população de Portugal fala esperanto. Pouco para o que se pretende uma língua universal. Mas suficiente para que um brasileiro desembarque em Moscou sem passar apuros. “Estive na Rússia e conheci o país inteiro sem falar mais do que ‘por favor’ e ‘obrigado’ em russo. Isso só foi possível porque descobri um esperantista em Moscou. Só tive de chegar ao aeroporto e telefonar para ele”, lembra o veterano Amarílio Carvalho, 70 anos. Ele não tinha 20 anos quando conheceu a menina-dos-olhos de Zamenhof em um livro de geografia. Logo soube que o idioma era ensinado na praça Mauá, no Rio de Janeiro, e correu para fazer a matrícula.
Ex-funcionário do INPS, Carvalho não é o único a utilizar o esperanto como passaporte. Aline Gauze, 15 anos, e Jociandro de Almeida, 17, aprenderam as primeiras palavras há três anos e já colocaram os pés na estrada. Eles integram o Atlaspatoart, grupo de teatro formado em Pato Branco há seis anos que, em 2000, resolveu traduzir os diálogos. Sob a batuta da mãe de Aline, Eliane Gauze, eles ensaiam 13 peças nos dois idiomas e, no ano passado, viajaram para apresentar uma delas no congresso brasileiro, em Brasília. “No início, a gente se atrapalhava um pouco. Mas hoje nossa pronúncia é tão fluente que é mais fácil a gente inserir termos em esperanto na versão em português do que deslizarmos na apresentação em esperanto”, supõe Jociandro.
Além de ensaiar o grupo, Eliane Gauze assumiu a coordenação do congresso de Pato Branco. “Em outros países, é comum os participantes passarem o dia inteiro sem nada para fazer. Este ano, resolvemos investir em atividades culturais. A intenção foi mostrar um pouco da nossa música, da nossa dança, para os estrangeiros”, diz. Até aula de capoeira foi oferecida pelo bancário Antonio Moreira Filho, 35, de São Paulo. Para ficar mais divertido, ele traduziu alguns versos tradicionais do jogo e fez todo mundo cantar. Além de jogar capoeira, Antonio se diverte compondo letras de rap em esperanto. “Costumo me encontrar com um grupo de rappers da zona leste de São Paulo chamado União da Periferia. Como nunca gravei minhas coisas, o pessoal ainda não sabe que eu canto em esperanto”, conta ele, repetindo gestos imortalizados pelo movimento hip-hop. Desde que ingressou na escola Lingva, na capital paulista, Antonio deixou de falar português com a filha de três anos. “Se ela pede um copo d’água, finjo que não entendi até ela repetir em esperanto. O português ela aprende na escola, comigo é diferente”, diz.
Loucuras – Posturas como a de Antonio surpreendem. Mas há quem faça loucuras ainda maiores em nome do idioma. O empresário Cláudio Petrycoski, dono da Atlas Eletrodomésticos, não terminou a primeira cartilha e, mesmo assim, é o grande mecenas da língua em Pato Branco. Não fosse o arrebatamento que sentiu ao descobrir o idioma, a cidade jamais receberia tantos estrangeiros ao mesmo tempo. Descendente de polonês, como Zamenhof, Petrycoski assistiu a uma palestra sobre o idioma universal há alguns anos e encampou a idéia. Convidou professores de Curitiba para dar aulas na cidade, convenceu o grupo de teatro Atlaspatoart a adotar a língua, mandou imprimir nas caixas de todos os produtos de sua fábrica a frase “Esperanto, mais que um idioma, um ideal” e fez campanha para que o ex-prefeito Alceni Guerra sancionasse, em 1999, a lei que transformou o idioma em disciplina a ser oferecida nas escolas, o que se mostrou inviável por falta de professores. Além disso, incentivou os moradores do distrito de São Roque do Chopim a entrar na dança. “Nenhum vilarejo do mundo tem o esperanto como segunda língua. Imaginei que São Roque do Chopim poderia se tornar a primeira e entrar para o Guinness”, conta. O empresário mandou construir um portal em homenagem a Zamenhof, inaugurado em agosto, e apoiou um bem-sucedido abaixo-assinado propondo a mudança do nome do bairro para Nova Espero.
Lá, um dos poucos colégios a continuar ministrando aulas de esperanto é a Escola Estadual São Roque. Ingried Müller, uma das professoras que ensinam o idioma a alunos de 4a à 8a série, defende seu ganha-pão. “Não existe uma língua tão fácil. Basta decorar os radicais. As regras para formar palavras são simples e não comportam exceções”, afirma. Todos os substantivos terminam em o, os adjetivos em a e os advérbios em e. Calor é varmo, caloroso é varma e calorosamente é varme. No infinitivo, os verbos terminam em i, no presente, em as, no passado, em is e no futuro, em os. Assim, quem trabalha laboras no presente, laboris no passado e laboros no futuro. Tudo isso faz com que a aluna Emanuelli Carboni, 12 anos, dê um show de pronúncia. “Também tenho aula de inglês. Mas o esperanto é muito mais fácil”, garante, pronta para pôr a boca no mundo.