Abril de 1910. No varal de roupas da decadente fazenda de cana-de-açúcar da família Breves, perdida em algum lugar do sertão nordestino, uma camisa branca manchada de sangue ondula ao vento como se fosse um espantalho. É uma das primeiras imagens de Abril despedaçado (Brasil/França/Suíça, 2001), o aguardado filme de Walter Salles, que finalmente estréia no País, em grande circuito, na sexta-feira 3, depois de passar na Inglaterra e nos Estados Unidos e ser o concorrente brasileiro às indicações ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Inflada pelo vento, a camisa parece adquirir vida. Era a peça usada pelo filho mais velho dos Breves ao ser baleado por um membro do próspero clã rival, os Ferreira, criadores de gado. Há tempos as duas famílias vivem um ciclo de morte e vingança na briga pelas terras da região. Segundo os rituais desta guerra entre vizinhos, quem mata um rival tem os dias contados. Justamente o tempo que
a mancha de sangue da camisa da vítima leva para amarelar.

Depois da viagem transformadora da personagem de Fernanda Montenegro pelo Nordeste em Central do Brasil, Walter Salles retorna à mesma paisagem árida e castigada para narrar uma história quase mítica, com toques de tragédia clássica. Seu herói agora se chama Tonho, brilhantemente interpretado por Rodrigo Santoro, um jovem de 20 anos que aguarda a morte anunciada sem sequer ter conhecido a vida. Obrigado pelo pai (José Dumont) a saldar a dívida de sangue do irmão assassinado, Tonho mata Isaías Ferreira (Servílio de Holanda) numa emboscada. O resto de seus poucos dias passa a ser a espera pela sentença final. Salles encontrou este enredo de ressonâncias épicas no romance homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré, publicado em 1982, que ganhou de presente do irmão João, também cineasta. “Li Abril despedaçado e não conseguia mais esquecer a história daquele rapaz que o pai impele a cometer um crime que ele não quer, em relação a um destino que ele não deseja”, contou o diretor a ISTOÉ.

Não se trata de uma transposição literal do romance, passado na região montanhosa da Albânia nos anos 30. Mas Kadaré adorou o resultado. Como é normal em adaptações cinematográficas, personagens foram excluídos ou viraram outros, caso do par de viajantes que no filme se transformou numa dupla circense – o palhaço Salustiano (Luiz Carlos Vasconcelos) e a engolidora de fogo Clara (Flavia Marco Antonio), por quem Tonho se apaixona, numa desesperada fuga das tradições que
o aprisionam. Apesar das mudanças, o cerne do romance foi mantido. Melhor ainda: soa completamente brasileiro. Nos estudos preliminares para a adaptação, os roteiristas Sérgio Machado e Karim Aïnouz descobriram que muitos rituais de vingança retratados por Kadaré
e determinados pelo rigoroso código de honra Kanun eram os mesmos
do sertão nordestino, inclusive o uso da camisa ensanguentada da vítima. Também o clima de ódio vivido entre os fictícios Berisha e os Kryeqyg
do romance foi encontrado em famílias reais, como os Monte e os Feitosa, do Ceará, retratados no livro Lutas de famílias no Brasil,
de Luiz Aguiar da Costa Pinto.

A sólida pesquisa não desembocou num painel de preciosismos históricos e sociológicos. Sabiamente, Salles se afastou até mesmo daquele estilo documental que tanto impressionou em Central do Brasil. Apoiado na esplêndida fotografia de Walter Carvalho, cuja luz crepuscular foi pesquisada em telas e aquarelas do pintor alemão Eduard Hildebrandt (1818-1869), o diretor criou uma atmosfera mágica, propícia ao conteúdo universal de sua tragédia nordestina narrada em ritmo bem mais lento que Central. “Decidi trilhar um caminho diferente. Primeiro, para não me repetir. Segundo, porque tive a clara impressão de que a realidade imediata no Brasil começou a ultrapassar a ficção”, explica Salles. “Veja os casos do ônibus 174, no Rio de Janeiro, e o sequestro da filha de Silvio Santos, em São Paulo, que sintetizam tudo aquilo que faz do Brasil o país que ele é hoje. Como ir além desta realidade na ficção?” O resultado é um filme que se desenrola como uma fábula, desenhando um universo fechado e atemporal no qual o destino enreda os personagens com um mecanismo de movimentos precisos e infalíveis. Para realçar este sentimento, os Breves passam o tempo todo trabalhando numa bolandeira, engenho comum no século XIX, usado na fabricação do melaço de cana, cujas rodas dentadas, semelhantes a um instrumento de tortura, são puxadas por dois bois negros. Salles se inspirou no cinema mudo russo, especialmente em A linha geral, de Eisenstein, para compor as expressivas cenas da fabricação da garapa.

Como em Central do Brasil, o cineasta depositou o ponto de vista da narrativa no olhar inocente de um garoto. Ele é Pacu, interpretado por Ravi Ramos Lacerda, que faz o irmão mais moço de Tonho. É ele quem inicia e fecha a história, narrando-a em off enquanto caminha sob a escuridão da madrugada na caatinga. O artifício ameniza o ritmo lento da narrativa, pautada pelo uso de silêncios e trocas de olhares entre os personagens. “Assim como Josué em Central do Brasil e Paco em Terra estrangeira, Pacu vê o mundo de forma diferente porque seu olhar não está poluído como o dos outros personagens que o cercam”, explica Salles. “As crianças são muito mais corajosas do que nós, adultos. São elas que têm a coragem de dizer não, que confrontam o poder estabelecido que, no caso de Abril, o pai representa.”

Chamado apenas de Menino pelos familiares, Pacu ganhou o apelido do palhaço Salustiano, que se inspirou no nome de um peixe, já que o sonho do garoto é conhecer o mar. “Mas é um peixe de água doce”, ironiza Menino. Da engolidora de fogos, ganhou um livro infantil, A pequena sereia. Como não sabe ler, passa horas criando variações da fábula, num belo contraponto à dura vida levada no engenho. Ravi, 14 anos, natural de João Pessoa, é filho de uma atriz e fazia teatro de rua antes de ser selecionado para o papel, num concurso com mais de 150 atores mirins, só na sua cidade. Ele está irrepreensível, assim como todo o núcleo da família Breves, incluindo a mãe (Rita Assemany). Só para se ter uma idéia do esmero da produção, na fase de ensaios Ravi e seu clã fictício passaram um mês cortando cana e operando a bolandeira, modificada e recriada a partir de um modelo original de 1870. Chegavam até a dormir na casa especialmente construída na cidade de Bom Sossego, na Bahia, um dos quatro sets da produção. Como já se tornou hábito nos filmes
de Walter Salles, este perfeccionismo salta aos olhos, transformando
até a simples visão de uma camisa ao vento numa imagem que não
sai da memória.