02/08/2002 - 10:00
O escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), incontestavelmente o criador da moderna literatura de suspense, ficção e terror, não cabe numa simples definição. Com sua breve vida confundindo-se com a vasta obra deixada, o amante dos arroubos de Lord Byron e dos últimos avanços da comunidade científica da época soube dar forma aos medos mais profundos do homem do século XIX, construindo verdadeiras obras-primas das trevas e da angústia. Não há ciência ou modernidade que evitem o calafrio de quem lê seus contos e poemas, mergulhados em soturnas narrativas que acompanham o leitor por ruas e noites vazias. Olhos brilhando sorrateiros na escuridão, paredes escondendo túmulos secretos, assassinatos misteriosos pelos cantos ermos das cidades são pavores que hoje, como ontem, aceleram o coração do mais cético dos cidadãos. A razão, aí, pouco ou nada pode fazer. São medos ancestrais trabalhados com maestria.
Embora tenha perpetrado uma obra surpreendentemente rica para tão pouco tempo de vida – uma vida extremamente tumultuada até sua morte, em meio a uma crise de delirium tremens provocada pelo alcoolismo que o perseguia, para horror da sociedade puritana da época –, o mestre dos contos escreveu um único romance, A narrativa de A. Gordon Pym (Cosac & Naify, 316 págs., R$ 35), que integra a coleção Prosa do Mundo. É uma edição caprichada, não exatamente inédita, pois uma outra já havia sido publicada no Brasil, em 1997, pela L&PM, mas passada despercebida. Esta é em capa dura, com sobrecapa e acompanhada de dois textos inéditos no País: o prefácio do russo Fiodor Dostoievski, que apresentou o escritor em artigo publicado na Rússia, em 1861; e o ensaio biográfico feito pelo francês Charles Baudelaire em 1856. São textos que por si recomendam o livro a todos aqueles que gostam da boa literatura.
A aventura vivida pelo jovem Gordon Pym, que o autor apresentava como transcrição literária de uma história real, é um bom exemplo de um pouco de tudo o que Poe escreveu nos diferentes gêneros pelos quais se aventurou. Se não há rimas para a poesia, sobra lirismo nas descrições, algo exageradas até, de paisagens paradisíacas que acabam por se revelarem inóspitas. O mistério espreita nos abismos dos mares agitados, nos navios que vagam tripulados por cadáveres, nas torturantes horas de fome e sede passadas nas tempestades, nos horrores das terras desconhecidas e selvagens. Não há, porém, uma escalada de horror, mas sim o choque do que atropela a razão, desafiando a lógica e o ceticismo. Quando menos se espera, em meio às muitas, longas e não raro exasperantes dissertações sobre a arte da navegação, os formatos das velas e o calado dos barcos, o personagem é abalroado pela loucura e pelo terror, com o flanco totalmente aberto. O leitor vai junto. E é este o grande mérito do romance: não deixar o leitor perceber de onde vai partir o golpe que o atinge, não lhe permitir preparar o fôlego para o mergulho inevitável e traiçoeiro.
Não é à toa que Dostoievski ressalta em seu texto a capacidade de Edgar Allan Poe de fazer dos detalhes a ferramenta principal de sua arquitetura literária. “Tentem imaginar (…) algo de incomum ou de inexistente, mas meramente possível; (…) nos contos de Poe vocês vêem intensamente todas as minúcias (…) a tal ponto que finalmente acabam por se convencer da sua possibilidade”, explica o escritor russo. Também Baudelaire aponta o mérito ao afirmar: “Em suas obras, todo começo é atraente, sem violência, como um turbilhão. Sua solenidade surpreende e mantém o espírito alerta. Sente-se logo de início que se trata de algo grave. E lentamente (…) se desenrola uma história cujo interesse repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto e sobre uma hipótese audaciosa. (…) Nenhum homem narrou com igual magia as exceções da vida humana e da natureza.” São os mestres que falam.