Esta é a história de sete brasileiros que enobrecem a comemoração de 1º de Maio, o Dia do Trabalhado. Seis são rebeldes anônimos que, contrariando todas as malvadezas do mundo econômico – inclusive a que se personifica em nosso sétimo personagem, Lucas, trabalhador de apenas sete anos –, deram certo fazendo o que gostam: trabalhando. Privilégio é uma coisa da qual eles sempre foram privados. O que os moveu foi exatamente o contrário: a persistência para superar a exclusão social, maldição que se agrava com a falta de emprego no Brasil, onde uma em cada cinco pessoas em idade de trabalhar está desocupada. São brasileiros que representam o que há de melhor no País: sua brava gente trabalhadora, pessoas que trouxeram do berço a predestinação para viver sem acesso à educação, saúde, trabalho e, por que não, felicidade, e se transformaram em heróis da persistência por uma vida melhor. Numa batalha pessoal, eles derrotaram a perversidade de um modelo que só desperta para as mazelas sociais em ano de eleições ou, demagogia suprema, nos discursos de saudação aos trabalhadores em 1º de Maio, algo inimaginável neste ano, quando o Dia do Trabalho justificaria o codinome “Dia do Desemprego”: só na Grande São Paulo, 19,9% da população economicamente ativa, ou um exército de 1,84 milhão de pessoas, está desempregada. Situação muito pior do que a da chamada “década perdida” (os anos 80). A ausência de crescimento econômico consistente desde então fomentou a situação calamitosa atual.
Triste 1º de Maio.

Bate coração, bate

Foi um médico de Pirajuí, no interior de São Paulo, que fez José Pedro da Silva desistir de ser engenheiro. O doutor cuidava de seu pai, que tinha tuberculose. Ele não cobrava nada. No máximo, trocava a consulta por um frango. José Pedro, menino pobre da zona rural, ficou impressionado com a generosidade do médico. E foi assim, como aluno de uma escola na roça, vendendo amendoim na rua, que ele começou a sonhar em ser médico. Movido por um QI em torno de 140 (a média é de 80 a 110) e pela necessidade, José Pedro foi à luta. Morando num seminário, estudou sozinho com apostilas emprestadas, enquanto dava aulas particulares de matemática. Entrou de primeira na faculdade de Medicina de Botucatu e deslanchou. Fez três anos de residência em São Paulo, foi para a Cleveland Clinic, a clínica de cardiologia mais famosa do mundo, nos Estados Unidos, e voltou para o grupo de Euryclides Zerbini, pioneiro em transplantes de coração no Brasil. Em 1984, formou seu próprio grupo de cardiologia no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo.

Aos 54 anos, pai de dois filhos, José Pedro é reverenciado no Exterior e cortejado pelos grandes hospitais do Brasil. Mas não sai da Beneficência, onde chefia o departamento de cardiologia e desenvolve novas técnicas de cirurgia, como a do transplante com dois corações e a da delicadíssima cirurgia em crianças que nascem apenas com o ventrículo direito. Em 1988, fez o primeiro transplante cardiopulmonar do país, o 13º do mundo. Ele sabe todos os segredos do nosso coração. “O meu dispara quando o dos outros ameaça parar”, diz. Disparar só é bom, explica, quando seu “portador” está apaixonado, o único tipo de stress saudável. “O resto é bom evitar.”

Chama o Asinha

Edson Leal sabe tudo de construção civil e não é engenheiro. Já construiu prédios para a GHG, onde trabalhou por dez anos. Ele sabe tanto que, trabalhando de segunda a sexta na construtora, conseguia mais serviço ainda fora dela, para todas as noites da semana, sábados e domingos. Foi na construtora, onde entrou como pedreiro, que ele aprendeu os ofícios da construção com os engenheiros. “Eles me ensinaram tudo.” Tem um vazamento no prédio? Ele resolve. Eletricidade, reforma, pintura, fechadura emperrada, piscina… Por saber fazer tudo isso, ele virou “Asinha” nos condomínios que construiu na zona sul de São Paulo. “A mulherada me colocou esse apelido”, conta. Todas o chamavam ao mesmo tempo e ele “voava” de uma casa para outra para não deixar ninguém na mão. Asinha não tirou férias durante dez anos para poder comprar um terreno em Cotia e construir a sua própria casa. Depois, comprou mais um terreno e fez outra para alugar. Ali, ele sonha um dia ter um sítio e se aposentar com um conforto inimaginável quando trabalhou na roça na cidade onde nasceu, Rio Vermelho, em Minas. O sítio, tudo indica, está a caminho. Em janeiro de 2001, ele deixou a GHG para trabalhar por conta própria. Ganha mais do que os R$ 800 que recebia na construtora, mas não trabalha menos, o que para ele é um prazer. Seus três filhos – Valdivino, 14, Valdinere, 12, e Valdirene, 9 – estão salvos. Com a mulher, Maria Nilde, ele imagina que seu filho será engenheiro e que as meninas serão médica e advogada. A história da família Leal vai, então, recomeçar num outro patamar.

77 anos de conquistas

José Afonso da Silva bem que poderia ser um dos personagens do também mineiro Guimarães Rosa que habitaram Buritizal, um vilarejo de Minas Gerais. Ele nasceu ali, 77 anos atrás, quando começou a enfrentar os desafios da vida. Com oito irmãos e um pai lavrador, foi padeiro, lidou com a enxada na roça, foi garimpeiro de cristal e alfaiate. As últimas peças que fez neste ofício foram o terno que vestiu na cerimônia de formatura da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e o smoking que usou na festa. Ele se formou na turma de 1957 e se tornou um dos maiores constitucionalistas do País. Nenhuma grande escola em seu currículo: fez madureza, a versão antiga do supletivo, e entrou no também antigo “clássico” do Colégio Fernão Dias. Isso em São Paulo, onde chegou em 1947 vindo de Cruzeiro, cidade mineira onde começou a aprender alfaiataria. Seu primeiro endereço na terra da garoa foi uma pensão no centro. Também morou num seminário, onde aprendeu latim. Trabalhou nas grandes alfaiatarias da época e sabe-se lá como arrumava tempo e energia para estudar.

Arrumou tempo e energia para tudo e se tornou oficial de Justiça, Procurador do Estado, secretário dos Negócios Jurídicos do prefeito Mário Covas em 1985, professor titular da faculdade onde se formou. Aposentado em 1995, continua sendo um trabalhador. Tem o seu escritório de advocacia. Do José Afonso alfaiate guarda a tesoura e lembranças como a do terno que cortou para Monteiro Lobato. Da infância, a lembrança do avô, fazendeiro que perdeu tudo na mesa de jogo. A tragédia financeira foi providencial. Tirou o berço de ouro de seu destino e o transformou num brasileiro de 24 quilates.

Um sonho chamado USP

Marcelo da Silva Gutierres, 29 anos, fez cinco anos de cursinho para entrar numa faculdade da Universidade de São Paulo (USP). Entrou este ano na ECA, a Escola de Comunicação e Artes, depois de passar por uma guerra em que quase 60 candidatos (59,86) disputavam uma vaga. É inacreditável que Marcelo, que cresceu numa casa que não tinha um único livro, estudou em decadentes escolas públicas, começou a trabalhar aos 14 anos, torcia para que a mãe, Aparecida, vendesse menos biscoitos na porta de um hospital – onde hoje é passadeira – para que sobrasse algum para levar para casa, tenha superado estudantes que saíram das melhores escolas particulares de São Paulo e nunca precisaram matar a fome com biscoito. Para fazer o cursinho, Marcelo dispendeu um esforço de olimpíada. Trabalhava das dez da noite às seis da manhã como office-boy e ia direto para as aulas. Ganhava R$ 232 por mês, pagava R$ 231 ao Anglo. Morria de sono à tarde e mal conseguia estudar. Mudou de emprego: foi ser contínuo num banco. Foi quando os livros entraram na casa de três cômodos de sua família, em Santo André. Dividindo a sala com dois irmãos, ele estudava à noite com uma lanterna na mão. No cursinho, onde passou a trabalhar na cantina, seu esforço comoveu professores e amigos, que deram apoio (inclusive financeiro) para que ele seguisse em frente. Deu tudo certo. Marcelo entrou este ano na USP no curso de jornalismo, arrumou emprego e moradia na universidade e já superou o sentimento de inferioridade intelectual que enfrentou quando começaram as aulas na ECA.

Essa é pra tocar no rádio

O cartão de visitas do sr. Angelo Mantovani é um retrato da sua modéstia. Impresso no computador, diz que o portador é “técnico eletroeletrônico”. O que não insinua nem de longe as travessuras que esse neto de italianos de 83 anos faz na oficina que instalou nos fundos do sobrado na Vila Olímpia, em São Paulo, onde vive com Helena, companheira há 55 anos. Como um atleta, ele dribla a prática brasileira de exclusão dos trabalhadores idosos. Os dois cantam, dançam e trabalham ali. Ela, cuidando da casa. Ele, dos rádios, centenas de rádios, dos dez mil discos, das 980 horas de música catalogada e do gramofone de 1905 que toca músicas gravadas em 1913. Mantovani é técnico, mas merece o título de doutor. Ele recupera rádios de válvulas, vitrolas, gramofones e tem tanta habilidade que faz trabalhos para o Museu da Imagem e do Som (MIS). “Não teve um rádio que eu não consertei”, diz. Muitos dos aparelhos que pertencem a seu acervo não são vendidos por dinheiro nenhum do mundo. O casal já tem tudo o que queria, coisas que o dinheiro não compra. Nem sonhe em procurar o sobrado da Vila Olímpia sem marcar hora. Ele pode estar envolvido numa sessão de ópera e não convém interromper o seu prazer. O sr. Mantovani tem as peculiaridades de um artista. Seu cartão é puro exercício de modéstia.

Tapete vermelho para Benê

Benê Oliveira diz que é filha única – de pai, mãe e irmãos. O pai, alcoólatra, foi embora, e a mãe morreu sem lhe deixar nenhum irmão quando ela tinha sete anos. Viveu um tempo com a avó Eugênia, uma quituteira de mão cheia de São José do Mato Dentro, vilarejo do sul de Minas, onde nasceu. Aos 14 anos, ela já era empregada doméstica em São Paulo, de uma família rica e mesquinha que desligava a água quente do quarto que dividia com os cachorros. Benê tomava leite misturado com água porque assim queria a patroa. Foi a vizinha da avarenta que a empurrou para outras casas, onde aprendeu os mais variados cardápios, do arábe ao francês. Também aprendeu a ler e escrever e, aos poucos, foi se tornando banqueteira, a banqueteira que há 30 anos ocupa o pódio ao lado de chefs franceses e italianos, professora de gastronomia em universidades, dona de bufê, consultora de grandes empresas do setor alimentício… Benê, 64 anos, é um show.

Pequeno grande Lucas

O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe, mas Lucas, sete anos, trabalha todos os dias para ajudar no orçamento da família. Ele e mais 2,9 milhões de crianças pobres que, no Brasil, não têm direito à infância. A mãe, Luzia, e o pai, Ivanildo Feitosa Cavalcanti, vendem flanela, e ele vende balas em saquinhos a R$ 1. Os outros irmãos ficam em casa porque são muito pequenos. Há nove meses, eles deixaram Águas Belas, cidadezinha da caatinga pernambucana para tentar a vida em São Paulo. Foram morar num outro lugar em que o nome também é um desacato à realidade – Paraisópolis, favela da zona sul. Esperto, educado, bem arrumadinho e cativante, ele é quem mais contribui para a renda mensal da família. Vende todos os saquinhos de bala que caem em suas mãos. Seu sonho é juntar dinheiro para comprar um bode, uma bicicleta e voltar para Pernambuco. Ele é um menino inteligente e já percebeu que, se lá era ruim, aqui é muito pior. “Ave-Maria, não gosto daqui não.”