Em fevereiro de 1993, em pleno sambódromo, o patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, Castor de Andrade, sacudiu a avenida com um discurso de cinco minutos condenando ferozmente a perseguição aos bicheiros do Rio de Janeiro. Em frente a uma tevê na cidade mineira de Carangola, sua terra natal, a juíza Denise Frossard assistiu ao vivo à palavra oficial dos bicheiros. Três meses depois, a própria Denise provocaria um terremoto. Condenou toda a cúpula do jogo do bicho
– 14 homens acusados de mandar matar, sequestrar e corromper para manter seu domínio, entre eles Castor – à pena máxima de seis anos
de prisão por formação de quadrilha. O poder político paralelo e a aceitação social dos bicheiros sofreu um golpe que parecia mortal.
Não foi. Dez anos depois da sentença, os bicheiros e seus sucessores não apenas continuam comandando a contravenção mais explícita do País, como expandiram seus negócios. Para o Ministério Público Estadual
e a Polícia Civil do Rio, eles estão mais fortes. Os anotadores de bicho, hoje sem importância na contabilidade do crime, foram trocados por milhares de máquinas caça-níqueis espalhadas por comércios, bingos
e cassinos clandestinos – montados até em apartamentos de luxo na avenida Atlântica, Copacabana, um dos endereços mais nobres do Rio. Donos do Carnaval carioca, como patronos e financiadores das maiores escolas de samba, revezam-se no comando da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), uma espécie de “bichobrás”, que, sob as
vistas do Estado, vai embolsar a partir deste domingo 2 de março, com
o desfile no Sambódromo, cerca de R$ 25 milhões entre a venda de ingressos e direitos de transmissão.

“O que mudou de lá para cá? Nada. Apenas eles tomaram mais cuidado, se organizaram melhor, saíram dos holofotes e por isso estão seguramente mais fortes e mais ricos”, afirmou Denise Frossard a ISTOÉ. Aposentada há seis anos e debutando na política como a deputada federal campeã de votos no Rio (383 mil), Denise bate na mesma tecla
de dez anos atrás: o bicho é só fachada para negócios ilícitos desses grupos criminosos, como contrabando, assassinatos, tráfico de drogas
e armas. “O bicho não tem a menor importância. Por trás da inocente aparência da contravenção passa uma montanha de dinheiro. O bicho
é a forma verde-e-amarela de se lavar dinheiro sujo”, aponta. Parceiro
da juíza nas investigações contra os bicheiros, o ex-procurador-geral
de Justiça Antônio Carlos Biscaia, hoje deputado federal pelo PT, diz
que se sente tão constrangido com o cenário atual que nem sequer assiste ao Carnaval. “Eles ficaram na encolha um tempo, mas
voltaram ainda mais poderosos”, lamenta.

Desde o reinado de Castor de Andrade, que controlava o esquema de corrupção das famiglias, poucos nomes mudaram no organograma dessa organização criminosa. Favorecidos por indultos, todos já estavam em liberdade três anos depois da sentença histórica. Mas nunca ficaram longe dos negócios. Dos 14 presos, quatro morreram – Castor de Andrade, Raul Capitão, Emil Pinheiro e Paulinho Andrade, filho de Castor, que foi assassinado. Todos os outros continuam nos negócios, a maioria ainda mais forte. Atual presidente da Liesa, cargo que ocupa pela quarta
vez, o Capitão Guimarães é considerado o sucessor de Castor. Substituiu Luizinho Drummond, outro ex-detento, na presidência da entidade.
O presidente do conselho é Anísio Abrahão David, também ex-colega
de cadeia dos dois primeiros. Antônio Petrus Kalil, o “Turcão”, expandiu seus negócios para Pernambuco, onde, segundo a Polícia Federal, financiaria negócios ilegais. Waldomiro Garcia, o “Miro”, tem, segundo fontes policiais, passado seu tempo livre em Foz do Iguaçu, numa fazenda com heliporto. “Seus negócios continuam prósperos”, reconhece o chefe da Polícia Civil, delegado Álvaro Lins, que no desfile deste ano
vai ficar de olho no único bicheiro procurado hoje pela polícia. Sobrinho de Castor de Andrade, que morreu em 1997, e um dos herdeiros do clã, Rogério de Andrade está condenado como mandante da morte de seu primo Paulinho de Andrade, ocorrida um ano depois. Mesmo foragido,
é o patrono da Mocidade Independente.

“Eles continuam a ser os grandes mantenedores do Carnaval. Mandam na Liga e nas escolas. Não mudou nada, mas eles não escondem isso de ninguém”, explica Marina Maggessi, coordenadora da Inteligência da Polícia Civil. “É só olhar o desfile”, sugere. Das escolas que ocuparam as sete primeiras colocações no Carnaval dos últimos dois anos, seis têm um bicheiro no comando. A segunda colocada de 2002, a Beija-Flor, tem Anísio Abrahão David. A terceira, a Imperatriz Leopoldinense, tem Luizinho Drummond. A quarta, Mocidade Independente, tem Rogério de Andrade. A quinta, Viradouro, tem Carlos Monassa, presidente do conselho fiscal da Liesa. A sexta, Salgueiro, tem Miro Garcia.
E a sétima, Grande Rio, tem Jaider Soares.
A exceção no grupo é a Mangueira. “O
dinheiro dos patronos será sempre
importante”, garante o vice-presidente
da Liesa, Jorge Luiz Castanheira,
braço direito do Capitão Guimarães.

A Liesa é a chave para se entender por que o poder dos “banqueiros” não se pulverizou. Criada em 1984, a Liga, “sem fins lucrativos”, passou a controlar o desfile das escolas de samba, antes a cargo do poder público, representado pela Riotur. Na prática, o desfile foi privatizado em favor dos bicheiros. De contraventores, eles passaram a patrocinadores do espetáculo. Este ano, entre a venda de ingressos, discos e direitos de transmissão – pagos com exclusividade pela Rede Globo –, a Liga vai embolsar R$ 1,26 milhão. Além disso, vai repassar às 14 agremiações do Grupo Especial entre R$ 1,7 milhão e R$ 1,9 milhão, cada uma. “Mais do que continuar dominando as escolas, eles dominaram a comercialização do Carnaval”, explica o jornalista Roberto Moura, estudioso da relação samba-bicheiros. A Liesa nunca sofreu uma auditoria ou fiscalização pública. Até agora. A deputada Denise Frossard decidiu pedir uma investigação sobre a Liesa. “A Liga é uma fachada”, diz.

Para o MP, o negócio do momento é a exploração de máquinas caça-níqueis. “Aí está a grande articulação criminosa”, diz a procuradora Mônica Di Piero, coordenadora da 1ª Central de Inquéritos do Ministério Público Estadual. “A maior parte do comércio de caça-níqueis está nas mãos de bicheiros”, concorda o procurador da República Luiz Francisco
de Souza, que conhece bem as ligações dos bingos e donos de máquinas caça-níqueis no Brasil com a máfia italiana e o narcotráfico. Um organograma feito pela Divisão Investigativa Antimáfia (DIA), do governo italiano, mostra que mafiosos como o italiano Lillo Lauricella e o espanhol Alejandro Ortiz estão por trás das “maquininhas” exportadas para o
Brasil. Quem tentou enfrentar esse poder ficou pelo caminho. Há um
ano e meio, o então subsecretário de Segurança Pública, coronel Lenine de Freitas, comandou uma ruidosa operação de repressão à máfia dos caça-níqueis na zona oeste. Invadiu a antiga fortaleza de Castor,
em Bangu, apreendeu 1.300 máquinas em três dias e encontrou uma agenda com 52 nomes de policiais civis e militares a serviço do crime organizado. Em poucas horas, a Justiça mandou devolver tudo e
os policiais suspeitos foram soltos. No ano passado, a Polícia Civil apreendeu apenas 146 maquininhas. O coronel Lenine, que sofreu ameaças e acabou afastado, diz que a guerra está sendo perdida.
“O poder deles hoje é ainda maior”, completa.

Para o ex-procurador-geral Biscaia, nenhum esquema desse porte funciona sem acordo com o poder público. “A ausência absoluta de repressão é o sinal mais claro da corrupção”, afirma. “Temos de admitir. O poder público não conseguiu desestruturar o jogo do bicho”, constata o promotor de Justiça Afrânio Silva Jardim. “A porta estava aberta na minha sentença, mas não se investigou a fundo. Por que o Estado não funciona? Por causa da corrupção”, pergunta e responde Denise Frossard, que faz uma constatação sombria. “Por paradoxal que possa parecer, acabei contribuindo para aumentar a cota da corrupção com os órgãos públicos”, diz a deputada, para quem ficou mais caro corromper. “É isso que esses dez anos comemoram. Hoje custa mais caro não investigá-los.”