Não se ouve outro tipo de música no setor black das lojas de discos das Grandes Galerias, complexo alternativo no centro de São Paulo. De uma caixa de som para outra, sobrepõe-se a mesma batida lenta do rap, à qual se soma uma voz indignada que se apresenta com a credencial: “Eu era a carne, agora sou a própria navalha.” Os versos cortantes, que de certa forma sintetizam a situação dos que vivem na periferia, pertencem à canção Negro drama, uma das melhores do ótimo CD duplo Nada como um dia após o outro dia, o quinto e aguardado trabalho do grupo paulistano Racionais Mc’s. A banda realizou uma façanha rara em momentos de vacas magras na indústria fonográfica. Em menos de uma semana, sua primeira tiragem de 100 mil cópias sumiu dos estoques da distribuidora Zambia Fonográfica. Uma façanha relevante, quando se pensa que o disco foi lançado sem nenhum estardalhaço. Contou apenas com a divulgação boca-a-boca dos fãs do quarteto formado por Mano
Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, cujos trabalhos saem pelo próprio selo, o Cosa Nostra.

Semana passada, antes de aterrissar nos principais magazines, o álbum era o mais procurado das Grandes Galerias. A vendedora Viviana Damázio de Oliveira, da loja American Play, em dois dias queimou todo o estoque de 300 CDs. “Desde que o disco chegou só vendi Racionais e vai ficar assim pelo menos durante um mês”, garante ela. Entre os consumidores, estava o operador de mercado financeiro Roberto José da Silva, 24 anos. “Gosto deles porque suas músicas mostram a realidade. Hoje não é só a periferia que curte o rap dos Racionais”, diz Silva. Coerente com o ideário contido nas 21 caudalosas canções, que fundem crítica social e revolta poética, Nada como um dia após o outro dia estampa na capa o preço sugerido de R$ 23,90, verdadeira afronta às multinacionais do disco. Segundo Wiliam Santiago, diretor artístico da Zambia Fonográfica,
trata-se de uma decisão conjunta entre o grupo e a distribuidora. “Decidimos ganhar menos e colocar o CD a um valor que as pessoas tivessem acesso.”

Cultuado por manos e playboys – jovens de classe média, na gíria “racional” – que eles tanto desprezam, os Racionais Mc’s carregam o título de campeões de vendagem, sem o grande público saber. Seu trabalho anterior, Sobrevivendo no inferno (1997), foi adquirido por mais de 500 mil fãs. Posição confortável que os permite realizar com total liberdade criativa um disco conceitual em dois atos, Chora agora e Ri depois. Sem nenhuma concessão, o grupo mostra de forma quase didática a matriz da violência e do crime. Para entender letras como V.L. e Jesus chorou é necessário decifrar um longo glossário de gírias e expressões da periferia. Mas o esforço vale a pena. Não bastasse a capacidade de expressar a tragédia urbana do País, os Racionais elevaram o rap a uma arte de modulação da fala coloquial que só não chacoalha os surdos.