Desde que assumiu o Ministério da Saúde, o sanitarista português José Gomes Temporão levanta temas polêmicos, como a realização de abortos na rede pública de saúde. Nos últimos dias, porém, o ministro foi colocado diante do caos que efetivamente impera em sua área e até agora não conseguiu respostas satisfatórias. As greves de médicos que paralisaram hospitais e ambulatórios em Alagoas, Pernambuco e Paraíba evidenciaram aquilo que os brasileiros mais humildes já sabem há algum tempo. A saúde do Brasil entrou em colapso absoluto. Os salários são baixos, os equipamentos precários, os repasses financeiros aos Estados e municípios cada vez mais reduzidos. Irritados, os médicos param de trabalhar e contribuintes acabam morrendo na porta dos hospitais. Em vez de encontrar uma saída, o governo federal e os Estados protagonizam um jogo de empurra sobre quem são os responsáveis. Foi nesse cenário que no domingo 19, Elizângela Souza, 28 anos, morreu com uma válvula mitral entupida no coração, três dias depois de tentar pela televisão comover os cardiologistas que estavam paralisados a realizarem sua cirurgia. “Não sei se estarei aqui amanhã”, implorava ela, com voz fraca. Na segunda- feira 13, o ajudante de estiva José Cesário da Silva, 28 anos, viu morrer nos braços o filho Wedson Carlos, um ano e quatro meses, após tentativa de internação em Maceió. “Meu filho morreu por falta de atendimento”, lamentou José. “O Estado não pode tratar a saúde desse jeito.”

Diante desses dramas, Temporão acusou os governadores de não aplicarem os recursos em saúde. Pelo levantamento do Ministério, somente sete unidades da Federação cumpririam a legislação, aplicando pelo menos 12% do que arrecadam em saúde. Segundo o ministro, o Rio Grande do Sul investe 4,99%. Minas Gerais, 6,87%. “Naquilo que o Tribunal de Contas do Estado compreende como investimento em saúde, nós ultrapassamos os 12%”, rebate o governador mineiro, Aécio Neves. “Se não, não teríamos nossas contas aprovadas”, emenda. O problema está naquilo que cada governo estabelece como aplicação em saúde. Para alguns, inaugurar uma rua asfaltada e com esgoto sanitário é investir em saúde, já que melhora as condições sanitárias. O problema se agrava na porta dos hospitais, de responsabilidade compartilhada da União e dos Estados: os governadores não reajustam os salários dos médicos, e o governo federal mantém congeladas as tabelas de procedimentos do Sistema Único de Saúde. “É uma situação muito crítica”, reclama André Valente, secretário de Saúde de Alagoas, Estado que, segundo o Ministério da Saúde, aplicaria 10,33% no setor, embora até quinta-feira 23 fosse um dos que viviam uma situação de greve no setor. Os médicos voltaram ao trabalho depois da promessa de que terão um aumento de 39% nos seus vencimentos. O salário dos médicos alagoanos é de R$ 1,4 mil por 40 horas semanais.

É a responsabilidade compartilhada nos hospitais que possibilita esse jogo de empurra entre a União e os Estados. Os médicos que estão fazendo greve não são subordinados à União. Seus salários são responsabilidade dos governadores. Mas o equipamento com que trabalham e o que os hospitais ganham a mais a partir da tabela de procedimentos do SUS cabem à União. “Nós temos capacidade para fazer 60 cirurgias cardíacas por mês e só estamos fazendo 35 por falta de teto financeiro do SUS”, afirma o presidente do Sindicato dos Médicos da Paraíba, José Delmir Rodrigues. Segundo ele, é comum os médicos terem de fazer a “escolha de Sofia”, uma referência ao filme em que uma personagem judia tem de escolher qual dos seus dois filhos ela terá de entregar aos nazistas. “Na falta de condições de atender a todos, nós vivemos esse drama”, diz ele.

O presidente do sindicato alagoano, Wellington Moura Galvão, confirma que é cada vez mais natural ter que selecionar as vítimas. “É comum o médico ter que decidir quem vive e quem morre”, diz. “Você só tem um respirador para cada três pacientes.” Um médico em Alagoas recebe R$ 1.015 para 20 horas semanais. “O direito de uma categoria profissional não pode ser sobrepor à vida”, critica Temporão. Galvão rebate: “O médico é autônomo, ele opera se quiser, ele não é funcionário do Ministério da Saúde.”

A crise na saúde estoura justamente no momento em que o governo busca sensibilizar o Congresso a aprovar a prorrogação da CPMF, contribuição criada inicialmente para financiar a saúde. É provável que a situação ajude o governo a convencer o Congresso da necessidade da prorrogação. Será, porém, um argumento ilusório. Os truques de desvinculação da receita que o governo foi criando após o início da CPMF fazem com que hoje, a União repasse aos Estados para aplicar em saúde apenas R$ 18 bilhões. E a arrecadação anual da CPMF é R$ 39 bilhões.

As únicas ações concretas tomadas pelo Ministério da Saúde evidenciam que o problema é mesmo falta de dinheiro. “Nós estamos aumentando os tetos dos Estados, aumentamos em Alagoas e estamos aumentando em Pernambuco e na Paraíba”, afirma o secretário de Atenção à Saúde do Ministério, João Gabbardo dos Reis. “Liberando recursos para que os Estados possam melhorar a oferta de serviços”, avalia. Estará longe de resolver todo o problema. Não há previsão, por exemplo, de rever os valores das tabelas da SUS. O secretário alega que qualquer reajuste nos preços dos procedimentos “tem um peso muito grande no orçamento”. E a liberação de recursos não deixou de envolver alguma barganha. Na segunda-feira 20, o governador de Alagoas, Theotônio Vilela Filho, saiu de Brasília com R$ 20 milhões. Mas levou na bagagem também o pedido de Temporão de mobilizar a bancada de seu Estado a votar a favor da prorrogação da CPMF. A lógica é perversa, pois se havia dinheiro, poderia ter liberado antes.

Pessoas próximas a Temporão admitem que o ministro sentiu-se “encalacrado” com as greves e problemas do setor nos últimos dias. Temporão julgava que não deveria adotar medidas mais enérgicas para sanar o problema. Na sua avaliação, intervir nos hospitais estaduais, como seu antecessor Humberto Costa chegou a fazer uma vez no Rio de Janeiro, “seria um desastre”. Além da conotação política (Estados em que a situação foi mais aguda, como Paraíba e Alagoas, são governados pela oposição, pelo PSDB), a intervenção poderia ser um tiro no pé pela falta de estrutura do próprio Ministério. Enquanto Temporão sente-se “encalacrado”, a saúde torna-se caso de polícia. Em Alagoas, o Ministério Público vai investigar a morte do menino Wedson. Na Paraíba, a promotora de Defesa dos Direitos da Saúde, Ana Raquel Brito, afirmou que vai tomar várias providências para esclarecer as circunstâncias da morte de Elizângela. “Vamos encaminhar pedido ao promotor criminal para instaurar inquérito civil público”, disse a promotora. “Isso é crime de omissão de socorro, cumulado com homicídio culposo.” Ana Raquel demonstra irritação com a atitude dos cardiologistas: “Os médicos têm razão de reivindicar melhorias, os valores são extremamente baixos, mas não se pode paralisar serviços essenciais, abandonar centenas de pessoas que estão com o risco iminente de morte.”