São comuns as campanhas publicitárias pregarem o lema “as drogas são uma droga”. No entanto, a maioria das pessoas que começa a fazer uso de entorpecentes sente exatamente o contrário. A grande dificuldade no combate ao tráfico e ao uso de entorpecentes reside no fato de os psicotrópicos, pelo menos num primeiro momento, proporcionarem muito mais prazer do que sofrimento. E, ao que parece, isso é uma herança de nossos ancestrais. Um estudo publicado este mês pela revista americana Adiction, especializada no assunto, revelou que os seres humanos têm predisposição ao uso de drogas para compensar situações adversas.
Os antropólogos Roger Sullivan, da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, e Edward Hagen, da Universidade da Califórnia, EUA, mostraram que o uso de drogas circunda a espécie humana há milhares de anos.
Os aborígenes da Austrália, por exemplo, usavam uma planta chamada pituri, rica em nicotina, para inibir o apetite e assim poder atravessar o deserto com pouca comida. Artefatos descobertos no Equador indicam que o uso da folha de coca existe há mais de cinco mil anos. As populações dos Andes até hoje mascam as folhas para evitar o
mal- estar provocado pela altitude.

Herança ou não, o fato é que a busca das drogas, na maioria das
vezes, acontece por curiosidade ou prazer. Hoje, o entorpecente que mais traduz essa sensação de bem-estar é, sem dúvida o ecstasy. Sintetizado em 1914 como inibidor de apetite, o comprimido de 3,4 metilenodioximetanfetamina (MDMA) não foi comercializado porque não havia comprovação científica de sua eficácia. Ganhou força na década
de 80 nas festas intermináveis de Ibiza, na Espanha. Ao que tudo
indica, veio para ficar. Conhecida como a droga do amor pela geração
das raves, a substância tem efeitos negativos bem menos conhecidos
do que os positivos propalados pelos usuários. Este é um dos motivos pelo qual o entorpecente é um dos que mais cresce entre os jovens
do planeta. O último levantamento da Partnership for a Drug-free America, instituição americana contra as drogas, concluído no mês passado, acusa um aumento de 71% no consumo de ecstasy entre jovens americanos de 12 a 18 anos de 1999 para cá. Já o uso de maconha é estável e o de cocaína decai a cada ano (leia quadro). O estudo analisou sete mil jovens.

No Brasil, ainda não há estudos quantitativos. Mas no ano passado foi concluído o primeiro estudo qualitativo do País sobre a droga do amor. A tese
de mestrado de Murilo Baptista, psicólogo da Universidade Federal de
São Paulo, reflete bem a ignorância, responsável pelo crescimento do fenômeno. Durante dois anos, Baptista, 27, mergulhou no mundo das raves,
clubs e baladas regadas a ecstasy. Entrevistou 14 pessoas ligadas profissionalmente à droga (entre policiais, traficantes, psicólogos e a repórter que assina esta matéria). E submeteu 32 usuários de ecstasy a uma avalanche de perguntas sobre seus costumes, “baratos” e noções de perigo. O primeiro e já esperado resultado reflete diretamente o problema. Quase 100% da mostra é de classe média e média alta, com nível superior. Ou seja, têm acesso às informações sobre os perigos do ecstasy. Mas, na prática, sabem pouco sobre eles. Quando indagados sobre as informações que possuíam sobre
o ecstasy antes de fazerem o primeiro uso, 16 dos 32 usuários responderam somente os aspectos positivos (“é a droga do amor”,
“boa para dançar”, “dá tesão”). Apenas um sexto dos entrevistados demonstrou noções de perigos, como a elevação da temperatura do corpo, que pode levar à morte, e a depressão depois de muito tempo
de uso (leia quadro sobre efeitos negativos).

Carinho – A má notícia é que, além da ignorância em relação aos malefícios do ecstasy, a droga está saindo do mundo das raves e clubs e sendo usada com mais frequente. “Os guetos da música eletrônica faziam com que a droga habitasse praticamente só esses locais”, diz Baptista. Mas isso está mudando. “Já há quem tome ecstasy em casa, para ficar com os amigos, ou em viagens nos finais de semana”, completa o psicólogo. O assessor de imprensa Ivan e os fotógrafos Inês, Bruno e Maria (nomes fictícios), entendem e vivem bem o processo descrito pelo pesquisador. Usuária esporádica de ecstasy há três anos, a turma de amigos tem preferido a sensualidade dos programas particulares ao agito das raves. No início do ano, os jovens tomaram ecstasy quase todo fim de semana para ficar em casa, na praia ou no sítio. “A gente leva um som eletrônico bacana e fica trocando carinho”, conta Ivan, 24 anos.

A intensidade da programação da turma é provavelmente o que a privará de futuros agitos. Parece alarmista, mas a maioria dos estudos conduzidos sobre o ecstasy leva a crer que quanto mais intenso e frequente for seu uso, piores serão as consequências. “O MDMA aumenta a produção e inibe a recaptação da serotonina, um neurotransmissor que passa a mensagem de prazer entre os neurônios cerebrais. Por isso, a sensação de felicidade descrita pelos usuários”, conta Baptista. “O problema é que o estímulo da liberação da serotonina pode levar a uma queda brusca na sua produção e a uma consequente depressão”, completa o especialista. Quem toma poucos comprimidos de ecstasy na vida, como o ator carioca Pedro, 26 anos, raramente sente o efeito da depressão, por isso a droga é tão atraente. “Experimentei o primeiro há três anos, mas nunca tomei demais. Com um comprimido a cada quatro meses, não sinto os efeitos negativos. É uma maravilha”, diz. No entanto, como em qualquer droga, poucos têm esse controle.

Há um ano, a publicitária Denise, 24 anos, era uma das figuras mais alegres da noite paulistana. Atualmente, a jovem completa seu quarto mês de tratamento por depressão. “Fui aumentando a frequência do uso sem me dar conta. Quando percebi já estava tomando um comprimido e meio de ecstasy a cada fim de semana”, recorda Denise. A publicitária percebeu que não estava bem quando passou a sentir mais intensidade nas “ressacas” de ecstasy do que no barato na hora da ingestão da droga. As chamadas “mid-week” blues (do inglês, depressões de meio de semana) são comuns aos usuários. Isso porque dois ou três dias depois do consumo da droga, a quantidade de serotonina no cérebro despenca vertiginosamente e provoca uma depressão. Por causa desse efeito colateral, Denise passou a se desinteressar pelas suas atividades – algo comum entre os usuários. Mas a maior mágoa que ela carrega é a da incompreensão de boa parte dos amigos. “Tem gente que nunca me disse para parar de tomar ecstasy, mas acha um absurdo eu me ‘drogar’ com antidepressivos. Que amigos, não?”, lamenta.

O aparente desdém dos amigos de Denise tem explicação. Trata-se de um entorpecente relativamente barato e de fácil acesso para a classe que o consome (um comprimido custa R$ 30). Também tem baixo grau
de dependência química, conforme explica o psiquiatra Dartiu Xavier, chefe do Programa de Orientação e Administração de Dependentes da Universidade Federal de São Paulo. “Trato cinco mil dependentes
químicos e nenhum por causa de ecstasy. Não é uma droga que vicia e mata com frequência, por isso seu uso é tão grande”, analisa. “O problema é que, a cada novo estudo, descobrimos mais malefícios”, completa. Uma pesquisa com ratos de laboratório publicada há duas semanas pela Universidade de Navarra, na Espanha, mostrou que
toxinas liberadas pelo fígado na hora da metabolização da droga
podem ser responsáveis por graves lesões cerebrais.

Mistura – Enquanto a ciência se encarrega de entender melhor o funcionamento da droga, centenas de jovens são obrigados a descobrir, por conta própria, as consequências do uso. O estagiário Augusto, 25 anos, que o diga. Adepto das raves, chegou a tomar 11 comprimidos de ecstasy numa só noitada. “A cada balada eu tomava um ecstasy a mais. Depois que você toma um, quer dois, três, quatro, pois o efeito vai
sendo cada vez menor”, conta. Cansado de fazer uso de tantos comprimidos de uma só vez, Augusto migrou para outra droga de efeito parecido, o GHB. Espécie de água salgada, o ácido gama-hidroxi-butírico é conhecido como ecstasy líquido por proporcionar efeitos parecidos
com os do MDMA, mas é mais nocivo. Numa mistura ousada de ecstasy com GHB, Augusto entrou em coma por causa de uma overdose. “Eu dançava com uns amigos e apaguei. Acordei dois dias depois no
hospital”, recorda-se. Apesar do susto, o jovem – agora avesso aos coquetéis – continua tomando seus comprimidos de ecstasy. “É só
não exagerar”, acredita. Então tá.