10/04/2002 - 10:00
Em maio de 1998, um grupo de atendentes do “Disque-Saúde” resolveu bater nos guichês da Delegacia Regional do Trabalho em Brasília reclamando do atraso no pagamento do salário e da falta de registro em carteira. Marcos Augusto de Almeida e os outros 12 funcionários não imaginavam que a corriqueira reclamação trabalhista contra o Ministério da Saúde levantaria a primeira franja de uma verdadeira farra de convênios feitos pelo governo federal, capaz de transformar simples digitadores, motoristas e telefonistas em pomposos “consultores técnicos” pagos pelo contribuinte. São os chamados “contratos via organismos internacionais” – acordos dos quais esses atendentes fazem parte. Por eles, basta um carimbo de uma entidade de renome no Exterior num determinado projeto para que a verba federal seja liberada na contratação de pessoal. Hoje essa mão-de-obra chega à proporção de um funcionário conveniado para cada grupo de 50 servidores públicos.
No ano passado, os contratos internacionais abocanharam R$ 1 bilhão do orçamento da União e a média salarial de seus superconsultores ficou duas vezes maior que os ganhos do funcionalismo público. O escândalo atualmente beneficia cerca de nove mil privilegiados em quase toda Esplanada, mas é o Ministério da Saúde o órgão campeão deste tipo de contratação. Só a pasta comandada até fevereiro deste ano pelo candidato do PSDB, José Serra, abriga aproximadamente mil consultores. Nenhum deles sequer teve o trabalho de enfrentar a difícil concorrência dos concursos públicos, como determina a Constituição.
A denúncia dos funcionários do Disque-Saúde foi o fio da meada para o Ministério Público do Trabalho abrir uma ação civil pública contra a União. “Em termos de números, quem mais vem se beneficiando é o Ministério da Saúde e a grande maioria dos consultores fica sediada em Brasília”, atesta Fábio Leal Cardoso, um dos procuradores que está à frente da investigação. De fato, a ex-pasta de Serra lidera os gastos se comparada a outros 17 ministérios que usam e abusam desse artifício. Foram R$ 324 milhões destinados à Saúde em 2001, considerando as despesas de suas autarquias. O que facilita este tipo de operação entre o governo brasileiro e os organismos internacionais é a intermediação do Ministério das Relações Exteriores, através da Agência Brasileira de Cooperação. Os funcionários contratados por esses acordos não têm carteira assinada e os salários ficam livres da mordida compulsória da Previdência e do Imposto de Renda. Entre os parceiros mais comuns nesse tipo de acordo estão o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) e a Unesco. Os ministérios explicam que o uso do artifício foi a única maneira encontrada para preencher seus quadros, já que os concursos públicos estavam suspensos pelo próprio governo. Mas o MP vê no processo de seleção o risco de favorecimento de amigos e afilhados políticos de ministros.
Há detalhes curiosos e intrigantes nesses acordos, como contratos redigidos em inglês ou francês e a perpetuação dos consultores em cadeiras importantes dos ministérios através de sucessivos termos aditivos. Segundo o Ministério Público, 80% destes consultores já estão trabalhando há pelo menos quatro anos. Um destes aditivos, segundo o contrato obtido por ISTOÉ, é assinado pelo próprio Serra. Nele, o governo brasileiro se compromete a repassar R$ 1,5 milhão para a Opas com o objetivo de erradicar o mosquito Aedes aegypti. O contrato para eliminar o mosquito da dengue é de 1999, mesmo ano em que foram demitidos 5.700 mata-mosquitos da Fundação Nacional de Saúde. Parece que os gastos não deram certo. A epidemia de dengue já superou a barreira de mais de 100 mil casos.
A fim de acabar com a farra, a juíza Rosarita Machado de Barros, da 15ª Vara do Trabalho de Brasília, determinou em dezembro de 2001 que o governo não contratasse mais consultores através das agências internacionais. E mais: fixou uma multa de R$ 500 por trabalhador contratado irregularmente. “Tem alguns casos de consultores de fato, mas acho que este número não passa de 500 casos, ou seja, cerca de 5% dos atuais contratos. Os outros 8.500 precisam ser preenchidos por concurso ou por contratos terceirizados”, avalia o segundo procurador responsável pelas investigações Joaquim Nascimento. “Os consultores perdem direitos trabalhistas como aposentadoria e FGTS, mas também recebem tudo limpo”, protesta o procurador Fábio Cardoso. Alegando que é praticamente impossível demitir os nove mil consultores de uma tacada sem prejudicar ações em andamento, a área jurídica do governo busca um acordo com o MP fixando um cronograma de demissões, abertura de concursos e a terceirização de mão-de-obra, como secretárias, motoristas e outros cargos.
Na mira – O desafio, agora, é evitar que essas outras formas de contratações, também dispensadas dos concursos, se transformem nos organismos internacionais de amanhã. “Não adianta o número de convênios diminuir se um novo quadro for formado com um regime de trabalho inadequado”, alerta a secretária de gestão do Ministério do Orçamento e Gestão, Evelyn Levy. O órgão começou a caça às bruxas dessas parcerias em fevereiro de 2001 com um decreto que visa diminuir o número de consultores. Só a exigência de justificativas e prestações de contas rigorosas nos contratos derrubaram o número de conveniados de 1.900 no ano 2000 para menos de 100 novos funcionários em 2001.
A Secretaria Federal de Controle Interno também está de olho nas tentativas de melhora para o “servidor internacional”. Isso seria possível graças à contratação por meio de cooperativas, trabalhos temporários ou distribuição de cargos de confiança. Todas são formas legais de entrar na esfera pública, mas estão à margem do que prevê o artigo 37 da Constituição. Ora porque não exigem concursos, ora porque são mais vulneráveis a indicações.
Lucialice Sarney, ex-mulher do ex-ministro do Meio Ambiente Sarney Filho, conta que recebeu muitas críticas no início do ano passado, quando deixou seu contrato via organismos internacionais e conseguiu migrar para o serviço público oficial. À frente do Programa Nacional de Educação Ambiental, ela recebia pouco mais de R$ 5 mil por mês. Nessa época, foi convidada para ocupar um cargo de confiança como assessora da Agência Nacional de Águas – também subordinado à pasta do então ministro Sarney. “Eu tive sorte de trabalhar numa área que gosto e ter um chefe que é meu ex-marido, com quem me dou muito bem”, justifica.
Outro tipo de acesso é proporcionado pelas Fundações Públicas. Dor de cabeça frequente do Tribunal de Contas da União, as fundações – órgãos sem fins lucrativos que vendem serviços às autarquias – já empregam mais de 30 mil pessoas e consomem cerca de R$ 780 milhões por ano do orçamento. Semelhante aos organismos internacionais, nesse sistema pode-se contratar livremente, sem a abertura de concursos. Já pela terceirização, o interessado tem de estar filiado à cooperativa fornecedora de mão-de-obra que vença a concorrência. Por fim, nos contratos temporários, a escolha se dá pelos currículos enviados após anúncio prévio das vagas. “Se os servidores fossem mais valorizados não seria necessário buscar mão-de-obra de fora”, critica o deputado Agnelo Queiroz (PC do B).
O secretário-geral do Sindicato dos Servidores Federais, Claudio Santana, vai além: “No papel, a terceirização existe para funções específicas. Na prática, essas pessoas são incorporadas ao quadro e realizam tarefas do dia-a-dia.” A funcionária pública Darlice Santos Salles, 34 anos, é testemunha. No Ministério do Planejamento, onde trabalha desde 1995, três em cada cinco funcionários da área de digitação e arquivo vieram de uma cooperativa. Ela recebe R$ 650 por mês, enquanto o cooperado da seção, R$ 1.200, pelo mesmo serviço. “Por que não trouxeram os servidores que estão anistiados”, pergunta, referindo-se aos desligados do setor sob a alegação de corte de custos. Mário Falcão Pessoa, da Secretaria Federal de Controle Interno, concorda com a servidora. Mas acredita que a terceirização de tarefas de apoio não é o pior dos mundos. “O ideal seria ter um quadro puro, só com servidores estáveis, como ocorre na França. Mas a diferença é que o serviço público francês acumula mais de 100 anos de profissionalismo”, conclui.