A única alegria que os argentinos vislumbram não passa pelo presidente Eduardo Duhalde, pelo ministro da Economia, Jorge Remes Lenicov, nem pelos técnicos do Banco Central que, de fato, tentam governar o caos econômico num momento em que os preços de alguns produtos de primeira necessidade sofrem remarcações de até 50%, o dólar bate e volta nos quatro pesos (caiu para 3,05 pesos na quarta-feira 27), a população que tem algum dinheiro se engalfinha nas portas dos bancos para comprar dólares (ou paga 100 pesos para um desempregado guardar o seu lugar) e a que não tem disputa no braço 22 cabeças de gado caídas de um caminhão que capotou em uma rodovia. É a Copa do Mundo, que começa daqui a dois meses no Japão e onde ficará o time do técnico Marcelo Bielsa, que poderá mostrar o que sobrou da grandeza argentina. A seleção do país é a favorita em todas as bolsas de apostas. Uma vitória seria uma bomba de efeito moral positivo para uma população que só vê agravar uma crise que começou há quatro anos, como recessão, e desembocou no caos econômico e no pânico generalizado – dos ricos, com medo de perder o que têm; da classe média, que despenca ladeira abaixo; dos pobres, cada vez mais miseráveis. Calcula-se que um quinto da população esteja desempregada.

Os argentinos estão desesperados. A ponto de ceder ao oportunismo de uma fábrica de perucas e vender seus próprios cabelos em troca de 35 pesos, como relatou a agência Reuters. A pobreza atinge 45% dos 35 milhões de habitantes. O presidente, alheio à realidade, ora tenta transmitir tranquilidade a uma população irada ora anuncia que dias piores virão, como fez na semana passada em entrevista aos quatro principais jornais do país. “Eu digo aos argentinos que vamos viver momentos mais difíceis do que este”, disse ele. Inoperante, Duhalde agora decidiu apostar nas soluções técnicas da equipe econômica. Melhor assim.

uando o dólar bateu nos quatro pesos, o Banco Central intensificou a venda da moeda por meio de um acordo com 27 bancos e 12 casas de câmbio e conseguiu segurar a disparada. Até quando? Analistas de mercado acreditam que sem soluções políticas que acompanhem as técnicas não haverá nenhum avanço para tirar a Argentina da crise. Eles apontam para a necessidade urgente de um plano amplo que envolva controle dos gastos das províncias, reformas estruturais, definição das políticas monetária e cambial. Apontam, enfim, para a necessidade de um governo – porém, nunca mais de um governo militar, como se insinuou nos últimos dias, provocando imediata reação popular de horror. Os argentinos estão perdendo muito, mas jamais baixam a guarda contra ditaduras. Eles não perderam a memória.

Duhalde, com certeza, não tem fôlego, carisma e competência para enfrentar tamanho desafio. Voltou de mãos vazias e humilhado de Monterrey, no México, onde se reuniu sem sucesso com o diretor do FMI, Horst Köler, e o presidente americano, George W. Bush, se recusou a encontrá-lo. Em um depoimento perante o Congresso, o secretário do Tesouro, Paul O’Neill, disse: “Nós não devemos ser uma fonte inesgotável de recursos.” Enquanto isso, os homens do FMI vêem o circo pegar fogo sem mexer um músculo. Pior ainda: dizem que vão endurecer ainda mais sua postura até que o governo consiga um acordo com as províncias que satisfaça as exigências do organismo para, então, liberar fundos. É o FMI, na plenitude de sua ditadura monetária, que desembarca nesta segunda-feira, 1º de abril, em Buenos Aires, para conhecer o novo pacote de medidas. A data não colabora para a credibilidade do governo: 1º de abril é dia da mentira em todo o mundo ocidental.

Na Casa Rosada, sob uma trilha musical de panelas batendo, Duhalde diz que chegará até o fim do mandato provisório, em 2003. Ele reage como um extraterrestre. Sem atinar para sua estatura como político, recorda o primeiro-ministro britânico Winston Churchil (1874-1965), quando, no meio da Segunda Guerra, prometeu à população “sangue, suor e lágrimas”. Outra pérola do presidente argentino: “Se a ajuda (do FMI) não chegar, teremos que apertar os dentes, nenhum país acaba.” A expectativa é de que o Fundo injete cerca de US$ 20 bilhões. Analistas, porém, duvidam da ajuda e afirmam que, mesmo que ela venha, não servirá para nada.

O maior dos castigos ao povo argentino seria a anunciada hiperinflação, possibilidade que o próprio presidente já admitiu (e que foi prontamente minimizada por seu porta-voz, Eduardo Amadeo) e arrepiou os cabelos do ministro da Fazenda brasileiro, Pedro Malan. Na segunda-feira 25, Malan fez um apelo para que os organismos internacionais e os principais países que o apóiam tenham uma atitude mais efetiva e ao mesmo tempo mais flexível para lidar com a atual crise argentina. “A hora é agora”, disse Malan, para quem a prioridade número 1 é equacionar o problema do sistema de pagamentos para normalizar o setor bancário e o crédito.

Reservas – A situação é insuportável. No mês passado, o BC argentino gastou cerca de US$ 1,2 bilhão para aumentar o valor do peso. Esforço inútil. No final da semana passada, suas reservas caíam US$ 100 milhões por dia e estavam prestes a cair abaixo da marca de US$ 13 bilhões. Desde a decisão do presidente Duhalde de abandonar uma década de política de paridade entre o peso e o dólar, em janeiro, a moeda argentina perdeu mais de dois terços do seu valor. “Não há poder político que suporte uma disparada do dólar e da inflação”, disse o ex-ministro Federico Storani, da União Cívica Radical (UCR).

A desvalorização do peso resgata o sofrimento e o pânico que a população enfrentou quando a inflação chegou a 5.000% em 1991, ano que antecedeu a adoção da paridade com o dólar. Some-se ao fantasma do passado dramático um governo enfraquecido e sem rumo, o quinto desde meados de dezembro, e os argentinos entram em clima de guerra. No último fim de semana, ele correram aos supermercados para comprar gêneros de primeira necessidade para estocar. Depois, correram para a fila dos bancos, muitos deles para trocar 80, 100 pesos. Os preços sobem, o dólar oscila e Duhalde diz aos jornais que “não há como controlá-los”. É ou não é para entrar em pânico?