02/03/2002 - 10:00
De uma tacada só, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conseguiu espalhar estilhaços para todos os lados, ferindo, inclusive, a si próprio, ao invadir a Fazenda Córrego da Ponte, em Buritis (MG), do presidente Fernando Henrique Cardoso. As cenas dos sem-terra refestelados no sofá da sala do presidente, assistindo à tevê, comendo, bebendo e usando o telefone deixaram o MST em maus lençóis diante da opinião pública. “Foi uma cagada”, admitiu o maior expoente do MST, João Pedro Stédile (leia entrevista à pág. 34). O PT e a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, sempre tido como parceiro histórico do movimento, também foram atingidos em cheio. A ação da Polícia Federal, que humilhou os invasores, algemando os 16 líderes presos e obrigando-os a deitar no chão, acertou a imagem do governo FHC, com as fotos sendo publicadas na imprensa internacional. “Violência não justifica outra violência”, criticou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello. O Planalto também foi afetado pelo incrível descuido da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do general Alberto Cardoso, que ignorou todos as evidências da invasão, e pela pressa do ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, em culpar os petistas. Essas atitudes deram munição à oposição para levantar suspeitas de uma armação eleitoral. “Todos perderam”, resumiu Fernando Henrique. A mais desastrada ocupação dos sem-terra deixou em lados opostos o MST e o PT, evidenciando um distanciamento a cada dia maior.
Privacidade – A última briga feia ocorreu em 2000, quando o PT atuou como bombeiro para evitar que o governo usasse as Forças Armadas contra o movimento, que ocupou prédios públicos. Mas agora o golpe doeu fundo no estômago da cúpula petista, que se esforça para apresentar um Lula palatável ao gosto do eleitorado conservador. Ao invadir a fazenda presidencial na manhã de sábado 23, o MST conseguiu acabar com a festa do lançamento da pré-candidatura de Lula, no elegante Hotel Hilton, em São Paulo, onde ocorria a reunião do diretório nacional do PT. Mais do que com a ocupação, os petistas gelaram com as incômodas imagens dos sem-terra invadindo a privacidade de Fernando Henrique. Nas 22 horas que passaram na casa da família do presidente, os cerca de 300 trabalhadores rurais saquearam a adega de bebidas – cachaças de 15 anos, garrafas de uísque e vinhos franceses –, os freezers de carnes e até uma caixa de charutos cubanos, presente de Fidel Castro. Na saída, ao perceber que seriam vistoriados, jogaram no mato carne e objetos, como pratos e talheres. Da cozinha do presidente consumiram cerveja e sorvete. “Tudo que tem nesta casa é nosso”, chegou a proclamar um dos invasores para justificar o saque. O MST nega o vandalismo. “É natural que alguns tenham ficado deslumbrados. Eles tomaram bebidas finas que nunca viram na vida e quiseram experimentar. Só isso”, defendeu um dos principais coordenadores nacionais do MST, Gilmar Mauro.
“É o R$ 1,3 milhão do Lula”, apavorou-se um dos principais integrantes da campanha petista ao saber da bomba lançada pelo MST. Ele referia-se à foto do dinheiro encontrado pela PF na empresa Lunus Participações, de Roseana Sarney e de Jorge Murad. Era como se desmoronasse todo o trabalho do publicitário Duda Mendonça, de lapidar o perfil de Lula. “O PT faz tudo para desvincular sua imagem do MST, para parecer menos radical. O problema é que o MST saiu do controle”, opinou o cientista político David Fleisher, professor da Universidade de Brasília. Desta vez, os petistas já avisaram que não vão apagar incêndio. O MST deve responder sozinho pelas consequências de seus atos. “Não contem com o partido para nenhuma aventura política ou medida fora da lei. Pela força e pela violência, o MST não terá nosso apoio em nenhum momento. Vamos repelir, repudiar e condenar”, afirmou o presidente nacional do PT, de putado José Dirceu (SP). “Foi um ato de desrespeito e de abuso”, completou o senador Eduardo Suplicy (SP), até então o mais fiel escudeiro do MST dentro do PT. Outro aliado tradicional, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também censurou, pela voz de seu presidente, dom Raymundo Damasceno.
Espaço inviolável – A associação à baderna é o grande fantasma do PT em período eleitoral. “Em todas as eleições, os adversários tentam ligar o PT à bagunça e ao radicalismo. Mas mesmo assim o eleitorado tem crescido. Isso demonstra que as pessoas levam mais em conta os bons exemplos das administrações petistas do que as imagens que os adversários tentam colar ao partido”, observou o sociólogo Gustavo Venturi, coordenador do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, ligada à legenda. Depois de três derrotas, Lula deu uma boa guinada para o centro, cortejando os liberais do PL e setores do PMDB. Na segunda-feira 25, dois dias depois da invasão da fazenda, Lula teve a oportunidade de criticar o MST, mas não deixou de atacar o governo, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura: “Aquela atitude não ajuda em nada a luta pela reforma agrária. Eu sou contra a invasão da fazenda do presidente como sou contra a invasão da casa de qualquer cidadão porque a casa é um espaço inviolável que as pessoas precisam respeitar.” Ele acusou o ministro Aloysio Nunes de leviano por ter culpado o PT no primeiro minuto e lançou suspeitas: “Eu fiquei me perguntando a quem interessava aquela ação. Ao MST não interessava. Os dirigentes dos sem- terra sabem que uma ação como essa desgasta o movimento diante da opinião pública. Ao PT ou à CUT não interessa”, afirmou, deixando no ar a resposta.
Apesar do estremecimento das relações entre PT e MST, os dois têm laços em comum, como a própria bandeira da reforma agrária e muitos militantes. Integrantes do MST que se candidatam, escolhem a legenda de Lula. É o caso do deputado federal Adão Pretto (RS), fundador do MST, que não gostou da reação da cúpula de seu partido, principalmente de Lula. “A direção do PT foi precipitada ao se guiar apenas pelas informações da imprensa. O inimigo comum do MST e do PT é o neoliberalismo. O PT nasceu para disputar eleições, mas acima de tudo para ser um instrumento da luta”, protestou Pretto. Assessor agrário de Lula, José Graziano da Silva, professor de economia agrícola da Unicamp, acredita que a atitude do MST se explica por sua ausência no noticiário. “A briga atual do MST não é com o PT, mas com a imprensa, que não dá atenção aos sem-terra. Não acredito que essa ocupação esteja ligada à eleição, mas ao período de entressafra, que vai de março a agosto”, opinou Graziano.
Se há alguma coisa que não passa pela cabeça dos dirigentes do MST é se preocupar com a repercussão dos atos dos sem-terra na campanha do PT. “O Lula terá mais problemas para explicar uma aliança com o PL do que a relação histórica do PT com o MST”, cutuca João Paulo Rodrigues, dirigente nacional e líder do grupo que invadiu a fazenda do presidente. O MST acha que, para tentar atrair a classe média, o PT fez uma opção exclusivamente eleitoral, afastando-se dos movimentos que fazem a luta de massas. “O PT não manda no MST”, avisou Gilmar Mauro. Os dirigentes sabem também que há uma corrente forte dentro do partido, formada pelos moderados, que sonha se livrar da incômoda companhia do MST. “O PT quer fazer com o MST o que fez com a gente”, diz José Maria de Almeida, que integrou a Convergência Socialista, expulsa do PT em 1992, e hoje é candidato do PSTU à Presidência. Não é o mesmo caso. Além de não ter nenhum vínculo formal com o partido, o MST é uma organização independente. Nem a Igreja Católica, que está no DNA do MST antes de o partido de Lula ter nascido, tem mais influência sobre as decisões dos sem-terra. Eles formam um dos movimentos sociais mais importantes da América Latina: são 12 mil militantes, 350 mil famílias de assentados, 80 mil famílias de acampados e 600 mil famílias cadastradas e prontas para ser organizadas, segundo seus líderes. Em torno do MST, gravitam atualmente entre cinco a seis milhões de brasileiros espalhados por todo o País. Mas o segredo da longevidade da organização nascida, em 1979, na Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, é a liberdade exercitada pelas bases.
Guerra – Mesmo cometendo desatinos como a invasão da fazenda de FHC, elas têm autonomia para tomar as decisões que quiserem. Apesar dos estragos provocados, o MST promete não arredar pé de suas táticas radicais e já programou uma nova ofensiva. No dia seguinte à prisão dos líderes, 500 sem-terra entraram na Fazenda Santa Maria, em Teodoro Sampaio, no Pontal do Paranapanema. A fazenda está fora das áreas a serem desapropriadas na região e é considerada produtiva pelo Incra. Pertence a Jovelino Mineiro, amigo de Fernando Henrique e sócio de seus filhos na Córrego da Ponte. Foi ocupada apenas para que o MST protestasse contra as prisões dos 16 sem-terra, que serão processados por formação de quadrilha, furto, invasão de propriedade, desobediência à ordem judicial e cárcere privado. “Prenderam 16 sem-terra, mas terão que prender um milhão. A partir da traição do governo FHC, nós declaramos guerra. Vamos invadir no Pontal, no Sul, no Norte e no Nordeste”, ameaçou José Rainha Júnior. Ele, que estava sumido, voltou à cena com seu velho estilo espalhafatoso.
Antes da invasão da fazenda presidencial, numa assembléia em que anunciava ocupações, Rainha fez aos companheiros uma inacreditável comparação entre as táticas do movimento e as do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização que controla o crime de dentro e de fora dos presídios. “O propósito da ação do PCC é errado, mas a tática é um instrumento impecável. Devia ser seguida por todos os movimentos de massa”, disse, deslumbrado com as ações simultâneas dos criminosos. A sete meses das eleições, três candidatos já foram alvejados: Roseana Sarney (PFL), pelo balaço do dinheiro achado na sua empresa, José Serra (PSDB), pelo tiro de raspão provocado pela suspeita de espionagem contra o PFL, e agora Lula, chamuscado pela invasão do MST na fazenda do presidente da República. São episódios que antecipam o clima de guerra da sucessão deste ano. Ainda há dois combatentes ilesos: Anthony Garotinho (PSB) e Ciro Gomes (PPS). Resta saber se eles terão a sua Lunus, o seu grampo ou o seu MST.