Depois de uma longa novela que deixaria perplexo o autor de O processo, Franz Kafka, chega à etapa final o projeto da Aeronáutica para a aquisição de caças supersônicos que substituirão os obsoletos Mirage IIIE, adquiridos no início dos anos 70. Nos próximos dias serão encerrados os estudos do Alto-Comando da Força Aérea Brasileira sobre os aviões oferecidos pelo disputado mercado internacional: o francês Mirage 2000-5Br, do consórcio brasileiro-francês Embraer/Dassault, o americano F-16, da Lockheed Martin, o sueco JAS-39 Gripen, do consórcio anglo-sueco British Aerospace Systems/Saab e os russos Sukhoi Su-35 (Rosboronexport) e MiG-29 (RAC-MiG). Trata-se da primeira etapa do projeto F/X da Aeronáutica, que prevê inicialmente a aquisição de 12 aviões de combate ao custo de US$ 788 bilhões e poderá chegar a 120 aeronaves até 2012. Na quinta-feira 18, a Aeronáutica decidiu que o negócio não será baseado apenas em um contrato com o fabricante do avião escolhido pelo Conselho de Defesa, mas também deverá ser um compromisso assinado pelo governo do país da empresa que fornecerá a aeronave. Ficou claro que deverá haver a garantia de transferência de tecnologia, cessão de mísseis inteligentes que a Aeronáutica pretende, além da compensação industrial e comercial, o chamado offset. O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista, já está tentando encontrar um espaço na agenda presidencial para marcar a reunião do Conselho de Defesa, que baterá o martelo. É tradição da caserna desde Napoleão Bonaparte: quando os assuntos são muito intrincados e envolvem a soberania e os recursos públicos, os militares costumam dividir a responsabilidade.

Os estudos sobre os aviões disponíveis no disputado mercado internacional duraram, pelo menos, oito anos. Nesse período, ministros da Aeronáutica foram demitidos e burocratas de Brasília chegaram a alegar que o País não sofre nenhum tipo de ameaça para se dar ao luxo de gastar quase US$ 1 bilhão em aviões para a defesa aérea. Discursos e sussurros foram ouvidos no Palácio do Planalto, no Congresso e em bases aéreas. Na reta final, depois de vencidas quase todas as etapas na Aeronáutica, o governo decidiu incluir a participação do Ministério do Desenvolvimento no assunto. Alguns ficaram com a impressão de que o Planalto estaria indeciso entre manter a prioridade inicial à conquista de tecnologia aeroespacial e privilegiar compensações comerciais e aumento de exportações. De fato, o ministro do Desenvolvimento, Sérgio Amaral, entrou nas conversações sobre os aviões com um furor comercial como se o negócio dos caças servisse para fechar as contas externas do Brasil neste ano. De qualquer maneira, Amaral não participará da reunião do Conselho de Defesa que vai definir o novo caça da Aeronáutica. A reunião contará com a presença dos comandantes militares, dos ministros da Fazenda, da Casa Civil, da Segurança Institucional e da Defesa. Será aberta com uma exposição do brigadeiro Baptista sobre a situação da Aeronáutica dos aviões oferecidos, das condições de financiamento e das cláusulas do contrato. Depois das discussões, a palavra final será do presidente Fernando Henrique Cardoso.

“Queremos o acesso à tecnologia”, garante o brigadeiro Baptista. Ele sabe que há espaço para negociações compensadoras, que não sacrifiquem o balanço de pagamentos do País. As áreas de petróleo e de material militar são as que movimentam os maiores negócios do mundo, segundo o brigadeiro Lauro Nei Menezes, consultor aeronáutico, que participou, há 33 anos, da aquisição dos velhos Mirage-IIIE. Os consórcios que apresentaram suas propostas, a Embraer e sua sócia francesa, Dassault-Aviation (Mirage), a americana Lockheed Martin (F-16), o consórcio anglo-sueco BAe/Saab (Gripen) e a russa Rosboronexport (Sukhoi Su-35), prometeram transferir tecnologia e realizar compensação industrial e comercial. Com a colaboração de Sérgio Amaral, a Aeronáutica pediu que as propostas sobre esses dois itens fossem definidas com um texto mais claro, o que acabou de ser feito.

Os franceses da Dassault se adiantaram e detalharam a proposta de transferência de tecnologia e de montagem dos aviões na fábrica da Embraer, no município paulista de Gavião Peixoto, para a indústria brasileira poder entrar no rentável mercado internacional de caças supersônicos. Além disso, garantiram o fornecimento do míssil ar-ar Mica, que tem a tecnologia que a Aeronáutica pretende. Trata-se de um míssil inteligente, BVR (Beyond Visual Range, além do alcance visual). Mas a Lockheed Martin, que estava praticamente descartada, obteve um trunfo e conseguiu apoio do governo americano para a negociação de um míssil que não seja uma sucata dourada: o Aim-120 Amraam, também BVR, uma arma com a qual os EUA impuseram restrições de fornecimento a outros países que adquiriram o F-16, como o Chile. Quanto à transferência de tecnologia por parte da Lockheed Martin – algo não contemplado na oferta original –, o assunto por enquanto está só na promessa. Como no caso da venda de mísseis, uma transferência de tecnologia não depende apenas da Casa Branca, uma vez que deverá ter a aprovação do Congresso. Já o governo sueco apóia o lobby da Saab, fabricante do Gripen, associada à britânica BAe Systems. Os suecos oferecem aumento de exportações brasileiras para a Europa, como a venda de cerca de cinco mil caminhões no valor de US$ 250 milhões. Finalmente, os russos também fazem uma articulação política e comercial para a negociação do Sukhoi Su-35, associados à Avibrás. Todos os fabricantes garantem financiamento. De qualquer forma, a briga pelo megacontrato dos caças é mais acirrada do que a do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), ganha pela Raytheon e beneficiada pelo vazamento da proposta dos franceses da Thomson.

Precedente – Priorizar compensações comerciais em detrimento da absorção tecnológica pode trazer sérios problemas para o País. Em 1998, a África do Sul abriu uma licitação para reequipar suas Forças Armadas de mar e ar através da compra de submarinos, fragatas, helicópteros e aviões militares, no valor total de US$ 5 bilhões. Os suecos da Saab e os britânicos da British Aerospace (BAe) foram os escolhidos para o fornecimento de caças e aviões de treinamento; o JAS-39 Gripen, do consórcio Saab/BAe – o mesmo que está sendo oferecido agora à FAB –, ganhou a concorrência para o fornecimento dos caças; e o britânico Hawk, fabricado só pela BAe, foi escolhido para avião de treinamento. Uma das razões para que britânicos e suecos levassem foi o amplo sistema de compensações comerciais que eles ofereceram às Forças de Defesa da África do Sul (FDAS). Na época, inclusive, o governo sul-africano foi obrigado a elaborar um relatório defendendo-se da acusação de que fizera a opção pela proposta da Saab/BAe baseada principalmente nas compensações comerciais, mais do que no mérito técnico dos equipamentos adquiridos.

O problema é que os britânicos e suecos implementaram uma política de aceleração das compensações para tornar o negócio irreversível, pois no contrato de fornecimento dos aviões existe uma cláusula que permite o cancelamento das encomendas até 2004. Isso significava que, se a contrapartida se acelerar, a África do Sul não terá como anular a intenção de compra. Entre as empresas sul-africanas beneficiadas pelo offset estão a Kentron, subsidiária da Denel, da qual a BAe é acionista estratégica, com 30% das ações. Associada à israelense Israel Aircraft Industry (IAI), a Kentron desenvolve o projeto do R-Darter, um míssil inteligente BVR. Esse míssil é similar ao Derby, também fabricado pela IAI, que será fornecido à FAB para a modernização dos 45 caças F-5 Tigger – uma empreitada levada a cabo em associação com a também israelense Elbit.

É sabido que a indústria bélica israelense vive uma crise sem precedentes. Isso explica por que a IAI e a Elbit, que são concorrentes em muitas áreas, torcem para que o projeto F/X da FAB possa utilizar os mesmos mísseis Derby que serão instalados nos F-5. Mas a possibilidade de equipar os aviões do projeto F/X com esse armamento só seria possível caso o vencedor da licitação da FAB fosse o JAS-39 Gripen, o único capaz de utilizar os mísseis israelenses sem necessidade de adaptação e custos adicionais.