Quem melhor do que Docinho, Florzinha e Lindinha para salvar a cidade de Townsville das garras do diabólico Macaco Loco? Nas horas de aperto, ninguém supera a garra das três protagonistas do filme As Meninas Superpoderosas, em cartaz nacional nos cinemas. Com visão de raio laser, supervelocidade e força sobre-humana, elas sempre conseguem vencer o mal antes da hora de dormir. Afinal, Docinho, Florzinha e Lindinha foram criadas no laboratório do Professor Utônio para serem bem-educadas e obedientes e ainda estão no jardim da infância, o que não as impediu de se tornar super-heroínas.

Essa combinação de graciosidade e força extrapola os limites da tela. Seja no pátio da escola ou nas academias, as meninas da vida real não poupam esforços para fazer tudo o que os meninos fazem. Muitas vezes, melhor do que eles, o que gera certos atritos. Provocados pela invasão de seus redutos, os garotos também se destacam em áreas em que, há algum tempo, eram proibidos de entrar. Como no mundo adulto, Luluzinhas e Bolinhas estão aprendendo a dividir o mesmo clube.

Quem cansou de ouvir que futebol era coisa de menino e que só as garotas podiam brincar de comidinha teve de rever seus conceitos. Apesar de o jogo ainda não estar equilibrado, um número cada vez maior de mulheres investe na carreira futebolística e nunca se viu tanta menina jogando pelada de rua. Thaís Rodrigues da Silva, dez anos, bate um bolão. Com as amigas, vive desafiando os garotos da escola e os vizinhos em Guarulhos (SP). Habilidosa, ela se queixa da postura dos meninos na hora da partida. “Eles não aceitam a gente no time. A gente é obrigada a montar um time só de garotas. E sempre que estamos ganhando, eles inventam que se machucaram para acabar com a brincadeira”, reclama. Mas não há desculpa que a faça desistir. “Não é por causa de um menino bobo que eu vou parar de jogar. Eles têm é medo da gente”, desafia. Como era de se esperar, os pequenos craques alegam que tudo não passa de desculpa de menina chorona. “Nós deixamos elas jogarem. O problema é que elas são ruins e só atrapalham”, diz Rafael Galindo, oito anos.

Não há estatísticas do número de triunfos de cada exército nessa miniguerra dos sexos. Esse tipo de rivalidade, no entanto, já não encontra espaço na casa dos Nazário de Lima. O herói do penta, Ronaldo, e sua esposa, Milene, têm em comum a paixão pelo futebol. Antes de conhecer o Fenômeno, a loira já era famosa por suas embaixadinhas. O jogador, por sua vez, assume sem grilos seu lado prendado: troca fraldas, dá banho e já levou o pequeno Ronald à festa de aniversário de um dos filhos de Di Biaggio, seu companheiro na Inter de Milão, para que Milene pudesse treinar. O artilheiro da Copa também faz questão de mostrar que não dá vexame na cozinha. Recentemente, Ronaldo deixou muita gente com água na boca ao preparar uma pizza no Domingão do Faustão. Como tudo que o craque faz vira moda (o corte de cabelo Cascão é uma prova disso), não será surpresa se de uma hora para outra começarem a surgir centenas de mestres-cuquinhas por aí. Aliás, a culinária faz parte da rotina de muitos meninos. “Gosto de cozinhar. Todo mundo tem que fazer tudo”, discursa Lucas Taylor, oito anos, habituado a ver o pai ao fogão. Este mês, o menino exercitou seus dotes fazendo bolachas no curso de férias do Atelier Arte & Expressão, em São Paulo.

Tamanha revolução nos hábitos infantis deve-se, acima de tudo, ao exemplo dos adultos. E não precisa ser nenhuma Milene para mostrar ao filho que os velhos conceitos machistas não estão com nada. Para a psicanalista Maria Teresa Maldonado, do Rio, especializada em crianças e adolescentes, a entrada da mulher no mercado de trabalho inaugurou uma série de modificações nos papéis de gênero e despertou a aprovação da sociedade. “Hoje, a mãe estimula o marido a cuidar da casa e dos filhos, enquanto as meninas aprendem que é possível desenvolver características de autonomia e combate”, diz. Por combate entenda-se enfrentar as adversidades do dia-a-dia ou literalmente atracar-se com alguém por lazer.

Luta – É o que fazem as irmãs Amanda e Victorya Palma Nunes com apoio irrestrito da mãe, Stela. Aos 12 anos, Amanda treina jiu-jitsu duas vezes por semana e, há três meses, convenceu a irmã Victorya, nove, a acompanhá-la no tatame. “No começo, a gente ficava encabulada com a reação dos outros. Eles estranhavam duas meninas gostarem de lutar. Mas agora tudo é motivo de piada. Os meninos da minha classe dizem para não mexer comigo porque sou perigosa”, conta a mais velha. Descalça e de quimono, Amanda hesita em tirar o brinco antes da aula como pede o treinador e não abre mão do prendedor de cabelo cor-de-rosa. Afinal, ela aprendeu a endurecer sem perder a ternura e a vaidade. “Faço jiu-jitsu, capoeira, axé, ginástica localizada e dança do ventre. E quero voltar ao balé no próximo semestre”, garante. Aliás, nas escolas de dança clássica, já não se ouve apenas o alarido feminino. O carioca Jorge Assunção, 13 anos, faz balé há seis anos na Escola Estadual de Dança Maria Olenewa. “Já pensei em desistir por vergonha do que as pessoas poderiam falar de mim”, admite. “Até meu pai era contra, mas hoje aceita numa boa. O balé é a minha vida”, diz o dançarino.

Fruto de uma sociedade patriarcal, Jorge esbarra no preconceito que sofrem os homens mais sensíveis. “Livrando-se dos estereótipos, meninos e meninas se desenvolvem melhor como pessoas. Mas a ternura nos meninos ainda é censurada”, avalia a psicanalista Maria Teresa Maldonado. “Há vinte anos, atendi em meu consultório um garoto que queria estudar piano e o pai dizia que era coisa de menina. Não é fácil lidar com a opinião de parentes e amigos”, diz. Isso torna o desafio dos rapazes mais difícil, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, de São Paulo. “Os pais zelam pela macheza dos meninos. O preconceito maior não é contra as meninas poderosas. É contra os meninos que não desejam ser tão machos quanto a maioria”, diz. Para ela, o sucesso de Docinho, Florzinha e Lindinha é facilmente justificável. “Nossas filhas descobriram que não são necessariamente mais fracas, menos corajosas ou menos ágeis do que os meninos”, diz.

O resultado imediato desta descoberta é a competição. É como se fosse um impulso natural. Em sua festa de aniversário de 13 anos, em novembro, Patrícia Isidro convidou seis meninos e duas meninas para correr na pista de kart do Shopping Interlagos, em São Paulo, onde seu pai trabalha. “Eu e uma amiga fizemos os melhores tempos e os garotos ficaram super sem graça, querendo bater na gente”, conta. Apaixonada pelo esporte, ela tem o próprio capacete e passa as noites de sexta-feira e sábado ao volante. Gaba-se ao contar que até o namorado de sua irmã, 22 anos, não conseguiu completar uma volta em menos de 22,4 segundos, seu recorde. Para Maria Rita, esse desejo de competição é despertado pelo ambiente. “Crianças a partir dos sete anos estão em processo de socialização e se adaptam ao mundo apresentado pelos pais. Se este mundo for sexista, elas serão sexistas”, afirma. Mais cedo ou mais tarde, essa disputa será superada. Essa é a aposta da indústria de animação, que vem investindo em personagens femininos ao mesmo tempo fortes e sensíveis (leia quadro à pág. 64). Para a psicóloga Elza Dias Pacheco, que estuda desenhos animados há 25 anos na Universidade de São Paulo, as transformações na indústria de animação são exigência do mundo moderno. “Como a sociedade se distancia cada vez mais do conto de fadas, a mulher do desenho também não espera mais o príncipe encantado”, diz. É mais fácil ver heroínas no batente do que à espera de um beijo mágico.