17/07/2002 - 10:00
Durante os 15 anos em que ficou encarcerada numa cela da prisão nacional de Qin-Cheng, entre 1976 e 1991, quando se suicidou, Madame Mao costurou milhares de vestidos para bonecas que eram exportadas da China para serem vendidas em lojas de brinquedo de todo o mundo. Burlando a segurança, a ex-primeira-dama chinesa bordou seu nome, Jiang Qing, na parte interna da bainha de muitos destes vestidos. Apesar de ser uma das personagens mais fascinantes do século XX, a biografia de Madame Mao ficaria marcada principalmente pela fúria vingativa e assassina com que tratou seus inimigos durante a tumultuada Revolução Cultural (1965-1976), o que lhe valeu a alcunha de “Demônio dos Ossos Brancos”. Pior: ela, a filha indesejada de uma concubina que se recusou a ter os pés amarrados, como mandava a tradição milenar chinesa, a atriz voluntariosa e rebelde que se tornaria companheira do líder revolucionário Mao Tsé-tung desde o final dos anos 30, foi praticamente varrida na poeira da história, como aquelas bonecas que ela autografava, esquecidas para sempre no armário de brinquedos de alguma criança. O resgate dessa figura trágica e complexa é feito agora em A construção de Madame Mao (Rocco, 350 págs., R$ 35), de Anchee Min, uma talentosa escritora chinesa radicada nos Estados Unidos desde 1984.
A narrativa cativante de Anchee revela uma mulher ambiciosa, mas também carente, que tentava se libertar da opressiva herança familiar buscando segurança em seus companheiros – ela teve três antes de Mao. Com este último, que encontrou nas montanhas de Yan’an, quando ele liderava a guerrilha comunista contra o governo de Chiang Kai-chek, Jiang Qing viveu uma intensa paixão. Madame Mao era odiada pela entourage maoísta e, apesar de reivindicar, jamais teve nenhum cargo político. Apenas quando o Grande Timoneiro se viu ameaçado pelos seus inimigos dentro do Partido Comunista, no início dos anos 60, Jiang Qing se transformou numa das principais inspiradoras da Revolução Cultural, um movimento anárquico, mobilizador de milhões de estudantes que Mao manipulou contra a liderança comunista. A ex-atriz finalmente encontrava o papel e o palco de sua vida, que terminariam com a morte do imperador vermelho, em 1976. A construção de Madame Mao mostra, assim, uma personagem humana, demasiadamente humana, muito além dos estereótipos costumeiros.