14/03/2007 - 10:00
Uma comédia de costumes ou um drama? Nenhum dos dois. À revisão histórica cabe despir os episódios do extraordinário que pode levá-los ao exagero ou a caricaturas. É o que acontece com algumas interpretações sobre a vinda da família real portuguesa para o Brasil, há quase 200 anos, dom João e dona Carlota Joaquina à frente. Para o escritor e pesquisador australiano Patrick Wilken, que se debruçou sobre o tema no livro Império à deriva (Objetiva), “há, de fato, uma tendência generalizada para a caricatura”. Segundo ele, “o episódio é visto como motor de um acontecimento mais importante, a Independência. E como este se sobrepõe, muitos não vêm esse período seriamente”. O bicentenário da chegada da corte portuguesa ao Brasil começa a ser comemorado este ano, mas a data será arredondada, de fato, no dia 8 de março do ano que vem. O período joanino durou 13 anos e marcou definitivamente o Brasil e, em especial, o Rio de Janeiro – à época, um imenso terreiro povoado majoritariamente por negros. Foi um baque violento de ambos os lados: a rica elite européia e a comunidade escrava teriam que conviver, apesar da erosão cultural entre elas.
Vem daí, segundo o secretário municipal da Cultura do Rio de Janeiro, Ricardo Macieira, a vocação da cidade para a diversidade e a convivência democrática com as diferenças. “O Rio é referência nacional do caldeirão cultural do Brasil”, diz. “A corte trouxe a cultura européia e a cidade passou por um processo de europeização. Isso muda o comportamento”, completa. Além das transformações da vida cotidiana na então colônia portuguesa, foram muitas as instituições de natureza científica, cultural, econômica implantadas que teriam fundamental importância no País. Por exemplo, já em 1808, a fundação do Banco do Brasil e a criação da Impressão Régia, de cujos prelos saíram o primeiro jornal do País, a Gazeta do Rio de Janeiro, além de traduções do filósofo iluminista Voltaire. Ou, ainda, a criação da Real Biblioteca (hoje Biblioteca Nacional), o Jardim Botânico (patrimônio e ponto turístico carioca) e o Museu Real (atual Museu Nacional da Quinta da Boa Vista). Ao instalar o primeiro Banco do Brasil, dom João apresentou o Rio e o País a todo o aparato administrativo de Estado necessário no trâmite econômico. Esse aparelho estatal se revelaria fundamental para o processo de Independência do Brasil.
Dom João desembarcou aqui com a família para fugir do fogo cruzado entre as tropas do general francês Jean-Andoche Junot, a serviço de Napoleão I, que invadiam seu país, e a ameaça de bombardeio em Lisboa. Por ter demorado a
optar pela viagem, ele foi visto como indeciso e vulnerável. Mas acabou gostando de morar aqui, onde, aliás, se tornou dom João VI, em 1816, com a morte de dona Maria I, a chamada rainha louca. Na obra Evolução política do Brasil, o historiador Caio Prado Júnior (1907-1990) diz que, “ao instalar no Brasil a sede da monarquia e tomar medidas de grande impacto político e econômico (como a abertura dos portos às nações amigas, em 1808), ele promoveu uma inversão de papéis entre Brasil e Portugal, em que a antiga colônia se transformava em sede do governo metropolitano.” Dom João participou de vários acontecimentos marcantes, como a assinatura dos tratados de comércio com a Inglaterra (1810); a elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves (1815); a repressão militar à Revolta Pernambucana (1817); e o reconhecimento da independência política do Brasil (1825), proclamada por seu filho, dom Pedro, em 1822, depois primeiro imperador do Brasil.
Nas comemorações do bicentenário, todos os resquícios, marcos, lembranças afetivas desse período estão sendo revisitados. Ou restaurados. Como a antiga Igreja da Sé e o solar Grandjean de Montigny. Livros, shows, palestras, filme, exposições, peças, enfim, todo o pacote de ações histórico-culturais, incluindo as restaurações, deverão consumir R$ 18 milhões da Prefeitura do Rio de Janeiro.
“Se olharmos para o Rio de Janeiro de 200 anos atrás entendemos o que a cidade era e o que é hoje”, diz o secretário Macieira. O escritor australiano Patrick Wilken concorda. Ele disse, em antiga entrevista, que essa foi uma faceta que o impressionou: “O paralelismo entre o Rio dos primeiros anos do século XIX, em que há uma elite riquíssima e uma comunidade escrava destituída de tudo, e
o Rio de hoje, onde de novo encontramos esse fosso entre uma elite riquíssima e as imensas favelas que a rodeiam. Penso que há grande continuidade na história do Brasil.”
CARICATURA HISTÓRICA |
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No filme Carlota Joaquina, princesa do Brasil, Marco Nanini incorporou um dom João caricato, glutão e meio bobo. Essa imagem tem sido redimensionada pela história. Não que dom João não fosse comilão; ele era, assim como os nobres europeus da época cujos hábitos alimentares se baseavam na fartura. Mas de tolo não tinha nada. Ao contrário do marido, a espanhola dona Carlota não se adaptou ao Brasil e deu graças a Deus quando regressou a Portugal.