03/05/2006 - 10:00
Antes dele ninguém sabia o que era inconsciente. Não havia ego, id ou superego, muito menos complexo de Édipo. Neurose, psicose e perversão não constavam nos dicionários e nenhum médico se interessava pelos sonhos dos pacientes. Se não inventou as patologias psíquicas, Sigmund Freud foi quem melhor vasculhou os escaninhos da mente. No final do século XIX, lançou os pilares do mais conhecido método psicoterapêutico já utilizado e serviu de referência para autores como Jacques Lacan, Melanie Klein, D. W. Winnicott e Anna Freud. Ainda hoje, embala milhares de herdeiros espalhados pelo mundo, da Áustria à Índia. A partir do dia 6, quando se completam 150 anos do nascimento do pai da psicanálise, lançamentos de livros, exposições e palestras festejarão a data e trarão à pauta novas questões em voga na comunidade científica, como o acompanhamento psicanalítico de bebês e a busca por uma abordagem que atenda melhor às demandas da terceira idade. Desde Freud, é nítida a percepção de que saúde mental está ligada à vida sexual saudável, a uma infância sem traumas e à consciência dos próprios sentimentos. Por tudo isso, seu legado resiste à proliferação de terapias comportamentais, que ignoram os preceitos de Freud, e às críticas de quem repudia o alto custo e a longa duração dos tratamentos. Tudo isso confirma a certeza de que Freud está vivo.
Filho de uma família judia, o jovem Sigmund cresceu em Viena, na Áustria, e desde cedo foi depositário das esperanças dos pais, que viam para o aluno aplicado um futuro promissor. “Interessado em línguas, filosofia e literatura, Freud voltou-se para a neurologia assim que terminou o curso de medicina e, decepcionado com a hipnose, buscou outras formas de tratamento. Hoje, sua obra é referência para o estudo da sociologia, da semiótica e do cinema”, observa o psicanalista Luiz Alberto Hanns, coordenador das novas traduções de Freud lançadas pela Imago Editora. Em maio, chega às lojas o segundo volume da série, com quatro títulos. A atividade de Freud como pesquisador, sua relação com os pacientes e a auto-análise empreendida por ele contribuíram para a descrição do inconsciente, seu maior legado. “Tal qual a descoberta de que não era o Sol que girava ao redor da Terra, isso fez com que o homem se visse atingido em seu narcisismo, na medida em que muitas de suas ações são regidas por um estranho que existe dentro de si”, diz Plínio Montagna, diretor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
No Brasil, a psicanálise atravessa um de seus melhores momentos. Pela primeira vez um brasileiro ocupa a presidência da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), entidade fundada por Freud em 1910 e que teve Carl Gustav Jung como primeiro presidente. Cláudio Eizirik, médico e psicanalista gaúcho, é o homem à frente da instituição, que reúne 11.500 membros ativos e outros cinco mil em formação em 35 países. Mais de mil no Brasil. “A história da psicanálise é composta por altos e baixos. Num primeiro momento, os psiquiatras a rejeitaram porque ela se baseava em teses não provadas. Nas décadas seguintes, houve grande aceitação e os principais psiquiatras a praticavam. Recentemente, a psicanálise voltou a ser questionada, não tanto pela eficiência, mas por causa da longa duração do tratamento”, diz Eizirik. “A verdade é que muitas pessoas a criticam por não admitir que parte da nossa vida escape ao nosso controle.”
Na última década, no entanto, ela tem sido adotada em conjunto com outras formas de terapia e com o uso de medicação. As maiores críticas acabam sendo em relação ao alto custo do tratamento, principalmente para quem segue à risca a cartilha e realiza mais de três sessões por semana. Para dar conta dessa apartação social, muitas sociedades psicanalíticas oferecem tratamento a preços módicos e muitos profissionais praticam preços diferentes conforme a condição econômica e o sofrimento psíquico do paciente. Como os distúrbios psíquicos seriam tratados hoje se Freud não tivesse nascido há 150 anos? “Ortopédicos, como a maioria dos tratamentos ainda é. Ortopédicos no sentido de adequar o paciente ao ‘orto’, ao padrão. O problema é que o desejo humano não tem nada de ‘padronizável’. Cada pessoa se satisfaz com algo muito particular”, diz o psicanalista Jorge Forbes, presidente do Instituto de Psicanálise Lacaniana. Amado ou odiado, Freud continua entre nós. Sua permanência nem Freud explica.