17/06/2009 - 10:00
As famílias passaram os dias nos hotéis Windsor à espera de notícias
Entrar nos salões do Hotel Windsor é como tocar a dor, a desolação, o vazio. O luto chegou em ondas de sofrimento que envolveram os brasileiros numa corrente solidária. Inicialmente, veio encoberto pelo manto da esperança de que algum dos 228 passageiros teria sobrevivido ao desastre do vôo 447, da Air France, no dia 31 de maio. Depois, uniu familiares em grupos de apoio mútuo para enfrentar a dura realidade da perda. Por fim, era um lugar de choro e meditação, um angustiante velório à espera do corpo. "O que mais me doeu foi ver uma mulher colada à janela olhando silenciosamente para o mar", conta um garçom.
"O mar que tinha levado todos." A apatia que ela demonstrava traduz o estado da maioria dos parentes das vítimas que estavam hospedados no hotel desde o primeiro dia de confirmação da tragédia. Uma triste rotina se instalou na vida de todos: às 8h, eles se encontravam no café da manhã em uma área vetada a estranhos.
Um dos funcionários se disse impressionado com o que via. "Parece que comiam por comer, que estavam sonâmbulos… Uma cena horrível." Logo depois, às 11h, já estavam reunidos novamente para ouvir o primeiro boletim do dia emitido pela Air France. "As pessoas choravam. Tinha um ambiente pesado, era uma sala de luto", disse à ISTOÉ Sylvain Owondo, 28 anos, que perdeu o pai, Joseph Owondo, no voo 447.
O próximo comunicado sairia às 19h e até lá ninguém sabia bem o que fazer da vida. Depois de alguns dias, muitos parentes foram transferidos da luxuosa unidade da Barra da Tijuca para a decadente filial do centro, ambas no Rio de Janeiro. Alguns preferiram voltar para suas casas. Mas o destino de todos continuava entrelaçado nos encontros diários, às 11h e às 19h, no hotel, para ouvir os piores relatos de suas vidas: acharam quatro corpos, localizaram uma parte da aeronave… Depois, se recolhiam, às vezes sem jantar, para suas casas ou para as acomodações pequenas e escuras da unidade do centro. No ambiente, móveis de cerejeira, colchas, paredes e cortinas na cor laranja, uma tevê de 20 polegadas e um desagradável cheiro de mofo. Ao contrário dos prédios da Barra, onde até os banheiros tinham vista para o mar ou para as montanhas.
Atualmente, as janelas dos apartamentos se abrem para avenidas, carros e prédios. Os que têm mais sorte avistam a Candelária, a poucos metros do hotel. Completamente isolados, por orientação da Air France, os familiares circulam entre os quartos e a sala de convenções reservada para os encontros. Uns choram o tempo todo, outros sentem necessidade de falar e partilhar, vários se recolhem à sua dor particular. Alguns, de tão devastados pelo sofrimento, nem permitem que a única arrumadeira autorizada a entrar na área arrume suas camas. Preferem ficar quietos, alternando esperança e desespero, luto e negação.
REINVENTAR A VIDA
Agora, é preciso tentar reinventar a vida. Mas o trauma da brutalidade do acidente, da impossibilidade de uma despedida, da incerteza sobre o que aconteceu naqueles minutos fatais dificilmente será superado, segundo a psicanalista carioca Cristiana Facchineti. "No caso de morte por doença, apesar do sofrimento, o luto começa antes, pois o familiar tem um tempo de elaborar a ideia", explica. "Mas, como a pessoa não pôde se preparar para a tragédia, aceitála passa a ser um desafio enorme e o processo pode ser muito mais longo." Cristiana explica que o luto passa por diversas fases, que não são cronológicas, nem necessariamente lineares, podendo ir e voltar.
O primeiro momento se caracteriza pela negação. O desaparecimento dos corpos contribui ainda mais para que os familiares rejeitem a ideia de que perderam um filho, um pai ou um irmão. A negação é seguida de um período de tristeza, saudade e busca constante da pessoa perdida. "Tem gente que relata a sensação da presença do familiar, que chega a ouvir sua voz."
Esse período é caracterizado por uma tensão constante: a pessoa fica inquieta, não consegue dormir direito, pensa o tempo todo no ente querido, procura estar próxima de seus objetos, sonha com ele e até se desinteressa pela própria aparência física. Mas ele não volta e a frustração se repete a cada dia. Com isso, ela vai aos poucos aceitando a perda. "Só que esse processo pode levar anos", alerta a psicanalista.
PRESENTES FECHADOS
Não há plano B, não há lenitivo que acabe com o sofrimento, mas a vida tem de seguir. "Perdi muito a noção do tempo, não sei que dia é hoje. As horas estão passando mais devagar. Passo os dias como um robô", diz Sharon Van Sluijs, 41 anos, irmã da jornalista Adriana Van Sluijs, 40 anos, que trabalhava na Petrobras. "Pediram para a gente levar alguma radiografia dos dentes ou ossos para ajudar no reconhecimento. Fui ao apartamento da Adriana ajudar a procurar. Foi um momento muito difícil", lembra. "Minha filha, de 6 anos, pegou um bonequinho que estava embrulhado.
Achamos que a Adriana tinha comprado de presente de aniversário para ela. E meu filho, de 9 anos, apanhou um carrinho que também estava embrulhado. Eu fiquei com uma pulseira que a Adriana usava muito. Encontramos algumas coisas que ela tinha comprado, algumas roupas em cima da mesa com etiqueta ainda…", conta Sharon, para quem este último detalhe mostrava que a irmã tinha planos para um futuro que jamais virá.
No momento, Sharon vive mais no passado. Relembra os momentos felizes da família com Adriana, em contraste com a rotina fria do hotel, onde está hospedada com a mãe e os dois filhos. "De manhã, eu ficava entre o quarto e uma salinha para colher material para exame de DNA (saliva), onde também ouvíamos os comunicados, serviam os almoços. Só ouvi o comunicado uma vez, quando encontraram os primeiros corpos. Uma senhora teve uma crise quando disseram que era o corpo de um homem.
CONSOLO Para Antonella, a música será o elo com o namorado
Acho que foi aí que eles pararam de falar se os corpos encontrados eram de homem ou mulher", diz Sharon. Adriana morava no Rio e cuidava da mãe, Vasthi Ester, 70 anos, que reside em Niterói. Sharon e a outra irmã, Jaqueline, moram na Holanda. O irmão, Maarten, vive entre Recife e Belo Horizonte, cidades nas quais trabalha como agente de hotelaria. Agora, a família terá que se reestruturar para amparar a matriarca. De imediato, Maarten pensa em levá-la para Belo Horizonte. "Não posso deixá-la sozinha depois de perder uma filha em um acidente destes.
A longo prazo não sabemos o que fazer." Por enquanto, a preocupação é dar a ela apoio para vivenciar o luto que ainda não conseguiu sentir direito. "Ela chora por espasmos, por soluços repentinos, de vez em quando", diz ele. A mãe fala da tensão: "Não aguento mais toda esta pressão. Não consigo nem parar e chorar a morte da minha filha."
Vasthi Ester não é diferente de outros pais, esposas, maridos e filhos. No fundo, a esperança de que o ente querido tenha conseguido sobreviver ainda existe, e permanecerá enquanto não houver um corpo identificado. É o caso de Nelson Faria Marinho, 66 anos, aposentado, que perdeu o filho, o engenheiro Nelson Marinho, 40. "Ele tinha todos os requisitos para sobreviver dentro d’água. Trabalhava em uma plataforma de prospecção de petróleo e fez curso no qual tinha que sair de um helicóptero debaixo d’água. Ele também sabia usar os equipamentos salva-vidas de aviação", diz o pai, tentando se agarrar a alguma lógica.
No momento seguinte, Marinho mostra que a esperança não significa que não está preparado para o pior. E revela sua força: "Gostaria de ir ao Recife ver os corpos, quero fazer isso para acabar com esse drama. Claro que vou reconhecer meu filho da maneira que ele estiver. Conheço-o palmo a palmo, é parte de mim", diz. Com a vida de cabeça para baixo, não consegue dormir. "Dou um cochilo e acordo de novo. Minha esposa acredita em espiritismo, mas agora está desesperada e questionando tudo."
OLHAR DISTANTE
Dentro do hotel Windsor, alguns familiares não conseguem ter a capacidade de reação de Marinho, uma prova de que um mesmo sofrimento pode ter muitas faces, igualmente dolorosas. Ladeada por pelo menos três seguranças que fazem a guarda do local para que nenhum intruso chegue perto, uma senhora se esquece numa cadeira, apoiando um dos braços na mesa. O olhar distante preocupa um dos homens, que oferece água e atendimento médico. Ela recusa com a cabeça, sem ânimo para pronunciar uma palavra. O peso do silêncio impera no local.
Alheios à atmosfera do luto que paira no quarto andar, os outros hóspedes circulam sem demonstrar curiosidade. Muitos nem sabem que dividem o espaço com pessoas que enfrentam tamanho sofrimento. Aproximadamente 70% dos 485 apartamentos estavam ocupados na semana passada, antes do feriado de Corpus Christi, quando esvaziou um pouco – o Windsor do centro da cidade é um hotel tipicamente de passagem, usado para pessoas em viagem de negócios e convenções. O entra e sai do lobby se confundia com o trânsito caótico das avenidas Presidente Vargas e Rio Branco, onde está localizado.
DOR Vasthi Ester e a filha Sharon passam os dias no hotel
Um burburinho de engravatados e mulheres vestindo tailleur e exibindo seus crachás se misturava ao frenesi da turma da moda que também habitava o local – o Fashion Rio acontecia a poucas quadras dali, no Píer Mauá. Quebrava a rotina uma legião de câmeras, fotógrafos e jornalistas, brasileiros e franceses, que se postaram na frente do hotel desde que os familiares das vítimas para lá se mudaram. Dos quatro andares utilizados para eventos corporativos, 23 salas estavam ocupadas. No quarto andar, ao lado dos familiares das vítimas da Air France, mas hermeticamente separados, um salão estava ocupado por uma convenção de uma financeira e outro por uma reunião de uma indústria de tintas.
TRANQUILIZANTES
O movimento em volta do hotel sugere que a vida segue em frente. Mas, para quem está recolhido no silêncio de sua casa, o clima é outro. A recepcionista Tuane Rocha, 28 anos, está recorrendo a tranquilizantes para prosseguir sem o noivo, o russo Andrei Kiselev, 47 anos, que iria se estabelecer no Rio. Seus dias, agora, não podem incluir mais os projetos de casamento e vida em comum com ele. "Quando aconteceu a queda do avião, cheguei a pensar que ele poderia ter sobrevivido, já que foi do Exército russo por 20 anos, nadava muito bem, estava em plena forma", conta. "Foi só durante uma missa em homenagem às vítimas que a ficha caiu." Mesmo assim, Tuane demonstra ter recaídas. "Ainda olho para a porta e penso que ele vai entrar a qualquer momento." A recepcionista passa boa parte de seus dias andando por Ipanema, bairro carioca que Andrei adorava e que eles frequentaram juntos durante muito tempo.
LEMBRANÇAS
SAUDADE Tuane anda por Ipanema pensando no noivo
O desafio de ter de conviver com as lembranças ainda muito vivas também faz de Antonella Pareschi, 33 anos, uma sobrevivente. Namorada do maestro Sílvio Barbato, Antonella é violinista e dividia o cotidiano com ele há quatro anos. "O Sílvio costumava compor às 6h, ao piano, sempre com muita emoção", diz ela. Em seguida, se pergunta: "Como vou tocar um réquiem de novo sem chorar?" Como se estivesse procurando consolar a si mesma, conclui: "A música será a maneira de estarmos perto um do outro, daqui em diante." Sua página no Orkut está repleta de fotos do casal e rever as imagens dos passeios, eventos e comemorações é uma terapia que a ajuda. Segundo a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos do Luto (Lelu) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), cada familiar deve criar seus próprios processos para superar a dor da perda.
O luto, na visão da especialista, não pode ser padronizado, estruturado, porque é extremamente individual. Na opinião dela, nem mesmo o habitual conceito de que "o tempo cura tudo" pode ser aplicado no caso de tragédias como essa. "Muitas vezes o tempo agrava, em vez de curar. É quando o luto se torna obsessivo", explica. O mistério que cerca a queda do voo 447 e a demora em poder se despedir da pessoa querida em uma cerimônia digna tendem a prolongar o sofrimento dos familiares. Mas cada um a seu modo e a seu tempo encontrará forças para seguir adiante, até que aquele que se foi se torne uma doce lembrança.
Discrição e silêncio no luto francês
Daniela Fernandes, de Paris
Os franceses são discretos em relação à vida das pessoas em casos de tragédias como a do voo 447. Existe um certo pudor que barra a entrada na intimidade dos parentes e vítimas. Assim como não são esfuziantes como os brasileiros na alegria, também são mais contidos na dor. A formalidade típica dos franceses ao se dirigir a pessoas com quem não têm intimidade transparece na cobertura da imprensa. É um luto silencioso. Há um enorme respeito e cuidado em abordar dramas de pessoas anônimas, até por questões legais.
A França tem uma legislação super-rigorosa sobre a proteção da imagem e da vida privada das pessoas – algo que dificulta, inclusive, o trabalho dos paparazzi. Fotos ou informações publicadas podem resultar em processos na Justiça, que podem custar muito caro para quem não respeita a norma. Por isso, a imprensa francesa também realizou uma ampla cobertura sobre o acidente, mas, diferentemente da brasileira, praticamente não publicou fotos das pessoas que estavam a bordo do avião. E os poucos relatos de franceses foram feitos quase sempre por colegas de trabalho dos passageiros. Os jornais não têm o hábito de abordar aspectos familiares e psicológicos em situações deste tipo. O Le Parisien foi o único, três dias após o acidente, a publicar uma capa inteira com várias fotos de vítimas, boa parte delas brasileira.
Até mesmo na ampla cobertura da missa em homenagem às vítimas, na Catedral Notre-Dame de Paris, os jornalistas do lado de fora quase sussurravam no microfone no momento de entrar ao vivo na tevê, dizendo que não ousavam elevar a voz. "Há diferenças culturais em relação à privacidade", diz Luiz Busato, professor de jornalismo da Universidade de Grenoble: "A imprensa francesa normalmente não se precipita sobre esse tipo de informação. Mas alguns jornais aproveitaram que várias fotos de vítimas e listas de nomes de passageiros foram publicadas no Brasil e acabaram utilizando isso como pretexto para divulgá-las também na França."