PassaDo "Porco", que gerou polêmica em 1966, hoje vale uma fortuna

Quando Nelson Leirner enviou seu "Porco" para o 4º Salão de Arte Contemporânea de Brasília, em 1966, fazia parte da obra – além do porco empalhado propriamente dito – uma peça de presunto que desapareceu no trajeto São Paulo-Brasília. Mas a suposta devoração do presunto não estava fora dos planos do artista, que dedicava sua criação à participação do público.

Hoje, na revisão do trabalho, o presunto está inacessível. A obra integra a "Ocupação Nelson Leirner", projeto do Itaú Cultural que convida artistas veteranos a ocupar o primeiro andar do edifício na av. Paulista. Leirner decidiu fazer uma releitura de alguns de seus clássicos.

ISTOÉ – Como é a experiência de citar-se e recriar-se a si mesmo?

Nelson Leirner – A ideia da exposição é conversar comigo mesmo e mostrar para o público esse diálogo: o Nelson de quase 50 anos atrás, sentado numa cadeira, e o Nelson atual, de barba branca. As intenções que eu tenho hoje são opostas. Há 50 anos, eu propunha o interativo: o trabalho tinha que ser mexido, tocado, violentado. Hoje eu dialogo com esses trabalhos dando-lhes a impossibilidade dessa interatividade.

ISTOÉ – Realmente, é impossível interagir com "Homenagem a Fontana", que contém zíperes que não podem mais ser abertos.

Leirner – Mas eu não fiz com essa intenção. Esse é o efeito do valor comercial que a obra adquiriu. O dono da obra pede: "Pelo amor de Deus, não me deixem abrir o zíper." Então o que eu faço? Uma série de obras que mostram zíperes que não mexem. No "Porco", você não pode saborear o Pata Negra. Eu coloquei o presunto de tal maneira que você não pode mais comer. É como se eu dissesse: "Eu quis que vo cês brincassem, mas minha vontade não foi res peitada. Agora eu não deixo mais vocês brincarem."

ISTOÉ – Ao substituir o presunto comum pelo Pata Negra você não está sugerindo que "evoluímos" para um consumismo selvagem?

Leirner – O próprio "Porco", se estivesse hoje na minha mão, seria o grande item de consumo. Se me devolvessem o "Porco" hoje, a sociedade compraria por uma fortuna.

ISTOÉ – Por que não temos mais discussões públicas como aquela entre você e Mario Pedrosa no jornal Correio da Manhã, sobre o "Porco"?

Leirner – Porque a discussão era provocada pelos artistas e hoje ela é provocada pelas instituições, o artista não tem mais palavra.

ISTOÉ – Mas ainda temos gestos como a retirada do Cildo Meireles da 27ª Bienal em protesto à reeleição de Edemar Cid Ferreira ao conselho da Bienal.

PRESENTE Presunto mais caro do mercado como símbolo do mercado de arte

Leirner – Só que não tem mais efeito. O consumo dismistifica. Pergunte-se se hoje um artista pensa antes de aceitar qualquer coisa. Se você rejeitar um convite de instituição ou de galeria, você morre. Duchamp já falava: trabalho sem interlocutor não existe. E a instituição virou nosso interlocutor. Hoje tudo é consumido. Faça um outdoor, um grafite, uma performance: se consome.

ISTOÉ – A pichação ainda não foi consumida.

Leirner – Mas você vai à livraria, já existe uma sessão especial de livros de pichação.

ISTOÉ – Os pichadores que invadiram a 28ª Bienal dizem que o único jeito de a pichação entrar na instituição é por meio da invasão.

Leirner – Até o dia que o Agnaldo Farias (curador de "Ocupação Nelson Leirner") fizer uma bienal toda pichada. Aí os pichadores vão lá pichar. Assim como o grafite entrou.

fotos: Divulgação, Paula Alzugaray, Paulo Melo Jr. (Roteiro)

ROTEIROS

Com quantos gigabytes se faz uma torre

47º Sa ão de artes plast icas de pernambuco – O Lugar dissonante / Torre Malakoff, Recife / até 26/7

No Recife, na Torre Malakoff, um dos mais antigos observatórios astronômicos das Américas, acontece a exposição de arte-tecnologia "O Lugar Dissonante", parte da programação anual do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Com curadoria de Lucas Bambozzi e Clarissa Diniz, esta é a segunda mostra do Salão, que no início de 2009 concedeu 21 bolsas para pesquisa e produção e 24 prêmios para pesquisas teóricas em artes visuais.

As cinco obras que integram a mostra "O Lugar Dissonante" enfatizam a presença e interação do público com a obra de arte. "Ouvidoria", de Lourival Cuquinha em parceria com o Grupo Hrönir, usa a tecnologia e a interatividade para relativizar a autoria. Os artistas instalaram cinco orelhões em frente à torre, com um aviso: "Você me cederia sua informação pela possibilidade de não pagar para emiti-la?" A proposta é trocar ligações gratuitas pelo direito de transmitir as conversas em caixas de som espalhadas numa sala escura de exposição. "O público não faz parte da obra, ele é a obra", diz Thelmo Cristovam, do Grupo Hrönir.

Em "Suíte 4 Mobile Tags", a artista Giselle Beiguelman também usa o telefone, mas para fazer música. Quadros com imagens de QR-code – código com informações – são interpretados por câmeras de quatro celulares usados pelo público. Estes recebem o comando de realizar uma ligação para outros aparelhos posicionados sobre os quadros. Cada aparelho tem um ringtone especialmente composto para a ocasião. "O mais gostoso é trabalhar com a possibilidade de uma suite composta de forma aleatória e espontânea entre os quatro ringtones", diz Giselle.

Motivação similar guiou o uruguaio Fernando Velázquez em "Your Life, Our Movie". O visitante escreve uma palavra no computador que gera uma busca na internet. E em cada uma das três telas, colocadas lado a lado, se intercalam três imagens selecionadas de páginas do Flickr. O resultado é um filme interativo, criado coletivamente, em tempo real. Para o curador Lucas Bambozzi, "Teia," de Paulo Nenflídio, simboliza o mote da exposição. "É uma obra que usa tecnologia rudimentar e se torna instrumento de interação do público com o espaço através do som. Além disso, a imagem de teia é um símbolo da construção colaborativa", explica.

Fernanda Assef

Interação O público participa de "Suíte 4 Mobile Tags" (acima) e "Teia"