19/04/2006 - 10:00
Já era noite em Brasília quando o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, deixou seu gabinete carregando um cartapácio de 136 páginas e pediu a seu motorista para tomar o caminho do Supremo Tribunal Federal. Não queria chamar a atenção. Entrou pelos fundos do prédio e foi direto para o gabinete do ministro Joaquim Barbosa. Sem testemunhas, os dois conversaram por 40 minutos. Ali, o procurador passou os papéis às mãos do ministro. Naquelas folhas ainda confidenciais estava o resultado da megainvestigação feita pelo Ministério Público Federal para destrinchar o esquema de propinas a deputados batizado de mensalão. Só na tarde da terça-feira 11, duas semanas após o encontro secreto com o relator Barbosa, veio a público o teor do que o procurador escreveu com base em oito meses de apuração. Trata-se de uma peça acusatória cuja precisão e objetividade fazem sobressair a sua eloqüência. “Eu não ia sujar a minha biografia”, justificou o procurador-geral a respeito da clareza de seu relatório.
A superdenúncia do MP suplanta em informação, organização e conclusão o relatório final da CPI dos Correios. Na prática, a função do relatório da comissão deveria ser, exatamente, embasar o trabalho dos procuradores. Mas eles agiram mais rápido que os deputados. Aliás, foi quando recebeu oficialmente o relatório da CPI que o procurador-geral anunciou que já havia apresentado sua denúncia ao Supremo. O constrangimento para os parlamentares não poderia ser maior. Afinal de contas, mensaleiros absolvidos no plenário foram denunciados pelo procurador. Ao sustentar que a antiga cúpula do PT montou “uma sofisticada organização criminosa” destinada a comprar lealdades na Câmara dos Deputados e pagar dívidas de campanha, ele pediu indiciamento criminal para 40 dos principais personagens do esquema. “O chefe do organograma delituoso”, segundo o promotor, foi o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu.
Com base nos fatos, o procurador-geral mostra que o objetivo principal da trama era “negociar apoio político, pagar dívidas pretéritas do partido e também custear gastos de campanha e outras despesas do PT e dos seus aliados”. O libelo acusatório atinge figuras famosas. Como o ex-presidente do PT José Genoino Neto, o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares, o ex-secretário-geral Silvio Pereira e o próprio Dirceu, encarregados, segundo o procurador, “da compra do suporte político em outros partidos políticos”. Ele classifica o empresário mineiro Marcos Valério como “um verdadeiro profissional do crime”. Da lista dos que devem ser indiciados, conforme pede o relatório, constam os ex-ministros Luiz Gushiken e Anderson Adauto, o marqueteiro Duda Mendonça e deputados e ex-deputados que se beneficiaram do mensalão. Casos de João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Corrêa (PP-PE), José Janene (PP-PR), Pedro Henry (PP-MT), Professor Luizinho (PT-SP) e João Magno (PT-MG), entre outros. Inclui o cassado Roberto Jefferson (PTB), que merece um registro especial: “Cabe destacar que todas as suas imputações ficaram comprovadas.” E não deixa de fora o renunciante Valdemar da Costa Neto (PL). Para o procurador-geral, as investigações evidenciaram um complexo coquetel de crimes que abrange evasão de divisas, corrupção, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, peculato, gestão fraudulenta e formação de quadrilha.
“O núcleo central da quadrilha”, anotou o procurador, era formado por Dirceu, Delúbio, Genoino e Silvio Pereira. A missão deles era “garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores mediante a compra de suporte político”. O segundo núcleo seria formado por Marcos Valério, por seus sócios nas agências de publicidade DNA e SMP&B e por suas funcionárias de confiança, que faziam a repartição do dinheiro do mensalão em Belo Horizonte e Brasília. O braço operacional e financeiro da quadrilha, de acordo com o texto, é formado por Kátia Rabello, presidente do Banco Rural, e outros dirigentes da instituição.
Após ser analisada pelo ministro-relator Barbosa no STF, a denúncia deverá se transformar em processo criminal contra os envolvidos. Para fazê-la, e levar adiante a investigação, o procurador da República se cercou de um grupo de auxiliares experientes, entre eles a subprocuradora Cláudia Sampaio Marques, o procurador regional Alexandre Espinosa e os procuradores da República Raquel Branquinho e José Alfredo Nascimento. A equipe contou ainda com o auxílio de peritos e auditores cedidos por outros órgãos, como a Polícia Federal, que ficaram com a função de organizar em relatórios os milhares de informações que chegavam com as quebras de sigilo dos envolvidos. Foram produzidos quase mil documentos. Prepara-se agora uma segunda peça acusatória. Nela podem entrar novos mensaleiros. “O resto vem na próxima etapa, é só esperar”, disse um dos investigadores a ISTOÉ.
A peça também é pedagógica. Disseca em detalhes as fontes de recursos que abasteceram o valerioduto. Dentre elas, licitações fraudadas para a contratação de agências de publicidade e as combinações entre governo e empresas para pagar por serviços não prestados. Na outra ponta, o procurador-geral destrincha o modo de distribuição de dinheiro a parlamentares. O PL, com R$ 10,8 milhões, é o partido que aparece como o detentor do maior naco do valerioduto. Para o PP de José Janene, Pedro Corrêa e Pedro Henry, diz a denúncia, foram pagos R$ 4,1 milhões entre 2003 e 2004. O PMDB é representado na peça pelo ex-deputado José Borba, acusado de receber R$ 2,1 milhões. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva passa incólume pela peça acusatória. Seu nome aparece apenas duas vezes no relatório, sempre sem ônus. Os petistas têm algo mais a comemorar. A denúncia afirma que o know-how de Marcos Valério, adotado pelo PT, teve origem no PSDB de Minas Gerais, durante a frustrada campanha de reeleição de Eduardo Azeredo, em 1998. Mestres em se dizerem pioneiros em tantas coisas, os petistas poderão dizer, ao menos, que não inventaram a corrupção.