04/02/2004 - 10:00
A independência da BBC está em jogo. É essa a primeira conclusão que se pode tirar sobre o desempenho da emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido depois da apresentação das conclusões na quarta-feira 28 do inquérito Hutton que pune a empresa de comunicação e salva a pele do primeiro-ministro britânico, Tony Blair. Ao avaliar o caso sobre se o premiê manipulou informações para justificar a participação do Reino Unido na invasão do Iraque e o suicídio do especialista em armas David Kelly, o juiz lorde Brian Hutton concentrou-se em apenas uma instituição, a BBC, feroz crítica da guerra do Iraque. Lorde Hutton concluiu que Blair não atuou de maneira “desonrosa, abusiva, nem enganosa” e, portanto, não deveria levar a responsabilidade pelo suicídio do cientista, fonte da polêmica reportagem da BBC. Logo no início do relatório, o juiz diz que não haveria como saber se Kelly cometeria suicídio depois de revelado seu nome na imprensa e, portanto, o governo não pode ser responsabilizado por sua morte. Sobre a reportagem de Andrew Gilligan em que diz que o governo teria “esquentado” um dossiê de setembro de 2002 sobre as armas de destruição em massa do Iraque para ingressar na guerra, Hutton foi enfático em sua crítica à emissora. “As alegações de Gilligan foram graves, mas sem fundamento e os diretores da corporação deveriam ter investigado a história a fundo antes de colocá-la no ar. A BBC também falhou ao investigar as reclamações do governo de que havia erros na reportagem”, avaliou Hutton.
O magistrado considerou que a reportagem da BBC é “infundada”. No programa de 29 de maio do ano passado, Gilligan disse que o governo de Blair inseriu no dossiê sobre as armas iraquianas a alegação de que Saddam Hussein possuía armas químicas e biológicas que poderiam ser acionadas em apenas 45 minutos. Mas, curiosamente, o juiz Hutton se “esqueceu” de esclarecer se realmente havia fundamento no relatório de Blair sobre o motivo da empreitada para derrubar Saddam Hussein. Isso porque, ao menos até agora, como admitiu esta semana o próprio secretário de Estado americano Colin Powell, pode ser que o Iraque não possuísse as tais armas antes da guerra. O fato é que Blair, que tinha tudo para se sair totalmente esfolado dessa investigação – dois terços dos britânicos queriam sua renúncia caso fosse considerado culpado –, saiu cantando vitória. Livrou-se, portanto de enfrentar a moção de confiança na Câmara dos Comuns e ainda exigiu retratação da BBC, que vê seu império bastante ameaçado.
A retratação foi feita depois de aparecerem os primeiros destroços causados pelo furacão Hutton na emissora. Primeiro foi a renúncia
do presidente da rede, Gavyn Davies, seguida pelo diretor-geral da empresa, Greg Dyke. O repórter Andrew Gilligan permaneceu na
empresa. Quem pediu desculpas foi o diretor interino Richard Ryder na quinta-feira 29. Blair respondeu dizendo que as aceita e que “respeitará
a independência da BBC”. Ver para crer. Em 2006, a emissora terá que enfrentar a avaliação do governo sobre seu pedido de renovação de licença. Mantida por dinheiro público – através de contribuição compulsória dos telespectadores –, a BBC agora enfrenta o turbilhão
da falta de credibilidade.
Mesmo assim, segundo pesquisa do jornal
Evening Standard
, 70% dos britânicos pedem uma investigação independente sobre os motivos que levaram o Reino Unido à guerra do Iraque. A pergunta que não quer calar, levantada inclusive pela oposição de Blair, o Partido Conservador, é o porquê da parcialidade de lorde Hutton neste relatório. Aguardemos os próximos capítulos desta polêmica novela.