No escritório de campanha eleitoral de Bill Clinton, em 1992, havia uma placa com dizeres que viraram legenda: “É a economia, estúpido!” Ou seja: a questão principal naquela corrida à Casa Branca era a carteira dos votantes. O grito de guerra para os democratas em 2004 mudou muito. Com o republicano George W. Bush entronado em Washington, a palavra de ordem agora virou “elegibilidade”. O que se procura é alguém que derrube o presidente, considerado duro na queda, e o resto – plataforma econômica, programas sociais, política externa – virá depois. Essa é uma das razões porque o senador por Massachusetts, John Kerry,
cuja campanha esperava a extrema-unção, virou o jogo em Iowa – em 19 de janeiro último – e levou as primárias de New Hampshire com
dois dígitos de vantagem sobre seu rival, somando 39% dos votos locais. O que se notou de imediato foi que o eleitorado está à procura
de alguém que tenha chances de ser eleito, e Kerry é quem aparece mais presidenciável no quadro atual.

Até mesmo o candidato vencedor parecia surpreso com os resultados
de Iowa. Não se previa uma queda tão espetacular do poderoso Howard Dean, ex-governador do Estado de Vermont. Ele vinha
liderando as pesquisas havia meses, tinha conseguido a chave do sucesso de arrecadação via internet e montara um movimento de
base ligado por computadores em todo o país. Seus discursos eram raras demonstrações de completo antagonismo e fúria contra o presidente e sua equipe. Dean foi o primeiro a se colocar totalmente contra a invasão do Iraque e apontava o dedo acusador para o peito
de seus colegas de partido que apoiaram a guerra – inclusive com voto
no Congresso –, como fez John Kerry.

A queda do desbocado – Mas, no fim, os democratas de carteirinha, aqueles registrados para votar em primárias, acharam que um desbocado – mesmo que sua ira seja compreensível – não teria muitas chances de convencer o restante do eleitorado do país – independentes, indecisos ou mesmo republicanos moderados – a puxar o tapete de W. Bush.
Dean pegou mero terceiro lugar em Iowa – Estado onde tinha concentrado grandes esforços – e seu discurso de concessão, com
gritos e urros de uma alegria histérica, acabou por afundar suas perspectivas em New Hampshire.

John Kerry, aos 60 anos e com os trejeitos aristocráticos típicos dos endinheirados da Nova Inglaterra (ele é casado com Teresa, herdeira da fortuna Heinz, das fábricas de ketchup), na verdade se assemelha mais a um índio de charutaria. Seu jogo de expressões faciais parece ter sido talhado por machado em madeira. Mas é um homem ancorado no centro do espectro político, com visões claras sobre seu projeto de governo, e não apenas um aríete para derrubar Bush. Há, é claro, outros motivos para a revitalização de sua campanha moribunda. Em meados do ano passado, Kerry foi diagnosticado com câncer na próstata e teve de abandonar a trilha em busca de votos. O caos desceu sobre sua organização eleitoral. Foi quando entrou em cena um conterrâneo de peso: o senador Ted Kennedy. Os marketeiros políticos pioneiros foram para a rua, e em seu lugar foi instalada como chefe de campanha Mary Beth Cahill – lendária ex-chefe do staff de Kennedy. “Foi Mary Beth quem primeiro percebeu que o eleitorado procuraria alguém elegível, um sujeito que conseguisse entrar no ringue com Bush e não parecer apenas um lutador de luta livre maníaco”, disse a ISTOÉ Anthony Benzario, ex-membro do comitê de campanha de Bill Clinton e atualmente no Comitê Nacional Democrático.

Depois dessa importante troca, Kerry parece ter emulado Kennedy
pelo processo de osmose. Ficou até parecido com um legítimo Kennedy.
O velho Ted andou com ele pelas geladas ruas e estradinhas de Iowa e New Hampshire, apertando mãos e beijando bebês com uma disposição
e carisma que são marcas registradas da família. E isso é importante, pois John Kennedy foi o último político democrata do nordeste americano a ser eleito presidente. Para Kerry, vencer as resistências no sul do país será algo próximo a um milagre. Mas o próprio candidato lembrou recentemente que pode “ganhar estas eleições sem muitos votos no sul. Al Gore provou que é possível se eleger sem o sul”, disse ele.
Al Gore, sabe-se, não é presidente. Mas esse cálculo político tem fundamento. Basta que o candidato democrata vença em New
Hampshire, Oregon e Novo México – que foram para o lado de Bush em 2002 – e levar ainda todos os Estados que votaram em Gore. O sul, então, vira desprezível. Não é tarefa impossível.

Kerry tem ainda uma arma poderosa em seu arsenal, os veteranos de guerra. O senador é um deles e foi condecorado duas vezes por seu valor em combate, quando comandava uma lancha-patrulha no delta do rio Mekong, no Vietnã. Nessa mesma época, George W. Bush estava patrulhando os céus de Houston – como piloto da Guarda Nacional, um conhecido refúgio dos filhos do privilégio – e fazendo campanha política no Arizona para um amigo de seu pai. Com os tours de soldados no Iraque ficando cada vez mais longos e as baixas se multiplicando diariamente, muitas famílias de militares – gente concentrada no sul e no sudoeste – passam a olhar Kerry como um igual. Foram os veteranos, por exemplo, que formaram a tropa de assalto que ajudou Kerry a arrasar o território de Dean em Iowa. E eles prometem a mesma dedicação em outras frentes de batalha.

A briga está longe de uma definição. Na próxima terça-feira 3, nada menos do que sete Estados vão às urnas em primárias democratas. O candidato John Edwards – que pegou respeitado segundo lugar em Iowa e terceiro em New Hampshire – é nativo da Carolina do Sul e promete levar o Estado, e mais outros do sul. Se não cumprir a promessa, pode esquecer a candidatura à Presidência e rezar para ser chamado para compor a chapa como vice-presidente. Quem também tem obrigação de marcar muitos pontos nos Estados sulistas é o general Wesley Clark – nativo de Arkansas –, que não disputou em Iowa e se concentrou em New Hampshire, mas abocanhou apenas 12% dos votos, empatando com Edwards em terceiro.

Superterça – Dean tem de ganhar em algum lugar, qualquer lugar. Para manter seu fôlego até a superterça, em março, quando a maioria dos Estados têm eleições primárias – inclusive Nova York e Califórnia –, o ex-governador de Vermont deve mostrar que não é apenas um grande candidato virtual, feito nas ondas da internet. E Kerry, que agora conta com apoio total do establishment democrata – que é contra o vermontino desbocado –, pode receber de bandeja dois mamutes do colégio eleitoral: Michigan e Missouri. Esses pontos cardeais do movimento sindicalista americano estavam no bolso de Dick Gephardt – líder da minoria na Câmara –, que caiu fora da corrida eleitoral depois da derrota em Iowa.

Mas o melhor cabo eleitoral de John Kerry, por enquanto, são mesmo as pesquisas de preferências. Segundo pesquisa da revista Newsweek, se as eleições fossem agora, o senador Kerry teria 49% dos votos, enquanto George W. Bush ficaria com 46%. É a primeira vez que um democrata aparece na frente do presidente em pesquisas. Mas até novembro tem muito tempo para a chapa republicana gastar seus esperados US$ 210 milhões de fundos de campanha. E essa turma já provou que é imbatível em ataques negativistas.