04/02/2004 - 10:00
O brasileiro é vaidoso. Seja por razões culturais, seja pelo fato de o clima quente ser mais propício ao culto ao corpo, no Brasil o cuidado com a beleza é um hábito incorporado à rotina. Esse zelo impulsiona a indústria da vaidade no País. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos mostram que o setor de cosméticos cresceu 18% em 2003 em relação a 2002. Esse bom desempenho não é estimulado apenas pelas vendas nos centros urbanos. Cremes, perfumes e outros artigos são consumidos com paixão em lugares remotos do País, como em pequenos povoados cercados pela vegetação da Amazônia. Alguns não estão nem no mapa. São lugarejos onde uma parte da população ainda vive da pesca, do cultivo de plantações, da criação de gado ou da árdua tarefa de garimpar ouro.
Nos rincões do Brasil, produtos de beleza são cultuados como troféus que podem valer gramas de ouro ou cabeças de gado. São guardados a sete chaves no fundo do armário ou exibidos na estante. O desejo de consumi-los é tão intenso que engorda, por exemplo, os números da venda de perfume na Amazônia. Não é à toa que um levantamento feito pelo IBGE mostra que o paraense é o povo mais perfumado do Brasil. Na capital, Belém, uma família gasta em média 1,38% de sua renda com artigos de perfumaria, contra uma média nacional de 0,64%. Com arroz, despende 0,88%. A renda desses consumidores não é obstáculo para adquirir os artigos. De acordo com o IBGE, quanto menor a faixa salarial, maior os gastos com perfumes, por exemplo.
Na lista de desejos dessa população encontram-se desde marcas populares até as sofisticadas. Há produtos de origem regional, outros com sonoridade francesa, como Claude Bergère, além da Avon, Boticário e Natura. O assistente de almoxarifado Jones Medeiros, 24 anos, retrata com perfeição a vaidade no interior. Jones mora em Prainha, cidade a 13 horas de barco de Belém, localizada na margem do rio Amazonas. Funcionário público, recebe um salário mínimo e mora com a mãe e as quatro irmãs numa típica casa da região, feita de madeira.
Coleção – O dinheiro ajuda no sustento da família. O pouco que sobra vai para a compra de perfumes do Boticário. Sua última aquisição lhe custou R$ 45, o equivalente a quase 20% de seu salário. E todo mês Jones compra
um perfume para aumentar sua coleção, escondida no fundo da gaveta para que suas irmãs não gastem tudo. “Elas não têm
cuidado. Apertam o spray no corpo todo”, reclama. Creme ele também compra, mas de vez em quando. Para adquirir os produtos,
ele recorre aos amigos. Afinal, Prainha não tem bancos. Cheque e cartão de crédito são coisas raras de ver. Sua chefe é uma das exceções que possuem talões. Então, no acerto, ela paga parcelado, com seu cheque, e Jones a reembolsa em dinheiro.
Há algumas explicações para esse anseio de consumir artigos de beleza nos grotões do Brasil. Uma delas é a de que, nesses locais, os cosméticos representam sonhos e auto-estima. “Adquirir cremes vindos de fora significa se transportar para a realidade da cidade grande da qual tantos desejam fazer parte”, diz o psicólogo Ari Rehfeld, da PUC/SP.
As empresas conhecem o potencial do mercado amazônico. O Boticário calcula que, neste ano, as vendas no Norte do Brasil aumentem 15%. Nas demais regiões a previsão é de 7%. A Natura tem dados ainda mais atraentes. O valor médio dos pedidos de suas vendedoras é maior nos grotões. Na região Norte fica na casa dos R$ 398. Em segundo lugar está o Nordeste, com R$ 362. Bem acima do que nos Estados onde o poder aquisitivo é maior. No Sul, é de R$ 333. Já a Avon tem um mercado de cinco milhões de consumidores no Norte e Nordeste.
Vender vaidade na Amazônia só é possível por causa do trabalho de milhares de mulheres. Elas saem de suas casas, atravessam rios e estradas e desafiam os perigos da selva. As vendas só se realizam depois de muita caminhada, poeira, sacolejo em cima de cavalo, noites nas redes dos barcos. Nada disso as desanima. Nem mesmo o trauma de sobreviver a um acidente de barco, como o ocorrido em 1981 no rio Amazonas, junto à cidade de Óbidos, no Pará. Na época, o barco Sobral Santos 2 que transportava 530 passageiros e cerca de 200 toneladas de carga, bem acima de sua capacidade, afundou quando ia de Manaus a Santarém. Mais de 250 pessoas morreram. A paraense Dênia Colares, 29 anos, revendedora do Boticário, se emociona ao lembrar que fez parte dessa triste história. Na época, ela e sua família estavam de mudança para Santarém. Perderam tudo. Roupa, móveis, dinheiro. Mas apenas uma perda o tempo não apagou. A do irmão Rui André, na época com três anos.
Dênia recorda a tragédia ao entrar novamente num barco de linha da região, as famosas “gaiolas”, construídas com madeira, geralmente em condições precárias de uso. É o único meio de transporte para Prainha e para boa parte das cidades na Amazônia. E, na verdade, pouca coisa mudou. A embarcação, com capacidade para 90 passageiros, levava cerca de 150 e mais toneladas de produtos. Os coletes salva-vidas eram insuficientes e havia pouco espaço para atar as redes. Porém, o barco partiu mesmo assim, sem ser parado pela fiscalização. Deixando o porto de Santarém, banhado pelas águas azuis-esverdeadas do rio Tocantins, passa pelo ponto onde o rio se encontra com as águas barrentas do Amazonas. Dênia faz essa viagem há quatro anos. “A gente esquece as dificuldades”, diz. Quando o barco atraca no porto da cidade, os moradores estão ansiosos por sua chegada. O encontro é marcado à tarde, depois que eles recebem o salário da principal fonte pagadora, a prefeitura. Dênia, assim como outras revendedoras, é tratada como rainha. E o sacrifício vale a pena. Por mês, ganha em torno de R$ 800. Outra cidade que ela costuma visitar é Santa Maria, distante uma hora e meia de Prainha, pelo rio, numa viagem feita numa pequena lancha, chamada por lá de voadeira.
Garimpo – Também nesses locais, o consumidor é exigente. A vendedora precisa saber na ponta da língua as funções do produto, colocá-lo nas mesmas sacolinhas da loja da cidade e levar os brindes eventuais. Nos vilarejos próximos a Itaituba, cidade cortada pela Transamazônica, no entanto, é preciso ter mais do que traquejo. É necessário persistência e coragem. Nesses lugares, o lucro é certo, já que a atividade garimpeira inflaciona o preço e faz com que cremes e perfumes sejam vendidos pelo dobro. Mas quem quer vender nas imediações do Cripurizão, por exemplo, uma vila da região, precisa pegar um vôo num pequeno avião, sem assentos, e ir sentado em cima de caixas de galinhas, litros de gasolina ou alimentos. Só o frete de ida custa R$ 650. A paranaense Lorenise Haeser, 35 anos, conhecida como Nice, morou quatro anos no Cripurizão e foi a primeira a vender produtos Natura por lá. Os cosméticos chegavam nos aviões cargueiros. Agora, outras mulheres seguem seu exemplo. São chamadas de marreteiras, vendedoras na língua dos garimpeiros. Nice voltou para Itaituba há quatro anos, mas continua atendendo a região. Pelo rádio, seus clientes fazem os pedidos e ela os envia por avião. “Tenho saudades dos tempos do garimpo”, conta.
O trabalho das cerca de 300 revendedoras Natura na região de Itaituba é supervisionado pela promotora de vendas Lene Araújo, 37 anos. Assistir a uma reunião dessas mulheres sob o comando de Lene é uma experiência única para quem é da cidade grande. Por lá, as moças não chegam de ônibus, carro ou táxi. Elas vêm montadas na boléia de um caminhão, a pé, de moto ou depois de enfrentar horas de balsa. No mesmo espaço, desfilam sandálias Havaianas, roupas de chita e outras mais sofisticadas. Com jeito manso, Lene ensina técnicas de vendas e como evitar calotes. Uma das poucas coisas que a tiram do sério é a demora da entrega dos pedidos. “A gente aqui passa apertado”, desabafa.
A feirante Thereza Pascoal, 32 anos, também sofre para dar conta dos pedidos. Ela é um dos maiores exemplos de como a
venda de produtos de beleza na Amazônia pode mudar a realidade das mulheres. Ela mora numa vila
no entroncamento entre as estradas Transamazônica e Cuiabá–Santarém. Thereza ajudava
o marido a capinar na roça e nos finais de semana vendia verduras na feira. O ganha-pão só dava para a comida. Saiu atrás de outro trabalho. Uma amiga sugeriu que vendesse Natura. “Achei que era coisa de remédio”, recorda-se, sorrindo. Isso foi há seis anos. Hoje é uma das melhores vendedoras da região. “Todo mundo está perfumado e vestido lá em casa. Realizei meu sonho de comprar uma moto. Agora só falta a casa de alvenaria”, diz.
As sacoleiras da beleza da Amazônia foram inclusive tema do documentário Vaidade, dirigido por Fabiano Maciel. De fato, a atividade é tão expressiva nesses lugares que a profissão pode passar de geração a geração. Seguindo o rio Amazonas, na Ilha de Marajó, fica a cidade de Salvaterra. Lá, o ofício de dona Ruth Alves, 56 anos, vendedora da Avon há 22, é seguido por filhos e netos. Ruth foi a primeira consultora da cidade e se tornou líder das 67 revendedoras da região. Coleciona com carinho os prêmios que ganhou por sua atuação. Várias estatuetas de Mrs. Albee (referência à imagem da primeira revendedora da Avon) concedidas às sacoleiras estrelas fazem parte de sua coleção. “Algumas quebraram e agora morro de ciúmes das que restaram”, diz.
Ela ensina os netos mais velhos como chegar lá. Sua neta Sthefanny Alves, 18 anos, está treinando as primeiras vendas. Ela visita as fazendas de Salvaterra montada num cavalo. Já tentou o búfalo, mas não deu certo. “Ele é va-ga-ro-so”, justifica, imitando com as mãos os passos do animal. “Prefiro usá-los no lazer. Para ganhar tempo e clientes é preciso ser ágil”, diz a menina. Enquanto essa tradição for renovada, o Brasil inteiro continuará perfumado.