28/01/2004 - 10:00
Ao chegar de férias caribenhas no dia 5 de janeiro, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan, não sabia ainda se o governo americano iria esnobá-lo. O secretário havia enviado cartas-convites a todas as partes envolvidas na ocupação do Iraque, para que se reunissem na segunda-feira 19 na sede da ONU em Nova York. A idéia era estabelecer conversas multilaterais sobre os problemas do país, principalmente o plano de eleições, em junho, para um governo de transição. Do Conselho de Governo Provisório iraquiano o R.S.V.P. retornou rapidamente com aceitação. Os britânicos também apontaram que mandariam um enviado de importância. Mas Washington mantinha suspense. “Não sei de qual escalão sairá o representante dos Estados Unidos. Espero que seja de alto escalão. Mas, na verdade, até agora não posso garantir a aceitação americana a meu convite”, disse Annan a ISTOÉ. Àquela altura, porém, Paul Bremer III – o administrador civil americano no Iraque – já estava de malas prontas para um périplo que o levaria primeiro à Casa Branca e depois à sede da ONU. Bremer chegou não como esnobe, mas como peregrino: de chapéu na mão.
Fez coro com os iraquianos para que a ONU voltasse ao campo de guerra e ajudasse na elaboração e coordenação das votações. Kofi Annan não mergulhou de cabeça na oportunidade – pelos corredores da casa havia desconfianças de armadilha, onde o interesse de fato da coligação anglo-americana fosse apenas a chancela internacional a seu plano. “De minha parte, eu gostaria que a ONU se concentrasse em
áreas onde nós temos claras vantagens, e que todos os iraquianos consideram vitais. Maiores detalhes e discussões são necessários para esclarecer exatamente qual será o papel das Nações Unidas nos vários campos de atuação”, disse o secretário. Ou seja, paira ainda a dúvida sobre qual o real poder político que a organização terá no território ocupado. Algo, aliás, que já vinha sendo motivo de acalorado debate entre Bremer e o enviado especial do secretário-geral, Sérgio Vieira de Mello. Este morreu sem saber a resposta, e a ONU retirou seus funcionários não-iraquianos de Bagdá. Transição indireta – Mas, ao mesmo tempo que as desconfianças poluíam o ambiente nas Nações Unidas, havia também uma sensação de que talvez agora a coligação anglo-americana tenha se dobrado à dura realidade e que, sem a ONU, eleições indiretas e formação de governo de transição sejam sonhos impossíveis de se conseguir. Desde que seu avião decolou de Bagdá até a aterrissagem de volta, Bremer teve notícias de manifestações diárias de milhares de xiitas seguidores do poderoso aiatolá Al-Sistani – que comanda essa maioria religiosa no país. Os protestos são tanto contra o prazo quanto ao formato das eleições. Os xiitas querem diretas-já. A exigência pode fazer descarrilar os planos americanos, ou por absoluta falta de organização que um processo eletivo destes implica, ou no caso de por milagre acontecerem eleições diretas e os xiitas acabarem abocanhando a parte do leão no poder, deixando minorias étnicas importantes – como curdos e sunitas – fora do comando da nação. “Acho que a vasta experiência da ONU em organizar e efetivar eleições gerais é fato aceito por todas as facções do Iraque. Esta é uma das razões pelas quais estamos discutindo com o secretário Annan uma efetiva participação da ONU no processo iraquiano. Outro motivo é tornar a presença das Nações Unidas, novamente, um fato consumado e produtivo no país”, disse Paul Bremer a ISTOÉ.
Ele poderia dizer também que Al-Sistani dá sinais de ser apaziguado em sua pressa eleitoral, caso as Nações Unidas entrem no jogo. Abdul Aziz Al-Hakim, homem do aiatolá xiita no Conselho Provisório do Iraque, disse que Al-Sistani e seu grupo respeitariam as conclusões levantadas pela ONU. “O nosso desejo é que uma equipe de especialistas e analistas de questões eleitorais da ONU vá verificar a situação in loco, e – com a ajuda de Deus – elabore um plano de ação para as votações. Somente assim teríamos uma parte isenta, formulando a política destas votações. Este é um processo que nós respeitaríamos”, disse a ISTOÉ o conselheiro Al-Hakim. A declaração ganha importância, principalmente, depois das afirmações do secretário Annan de que existem dúvidas sobre a viabilidade de eleições antes de junho. “A questão agora é se há condições técnicas, políticas ou de segurança para que eleições gerais diretas possam ser realizadas tão cedo quanto maio próximo.” Em outras palavras, diretas-já são inviáveis, restam apenas as indiretas.
Deste modo, parece ter ficado claro que a repentina urgência dos americanos em chamar a ONU de volta a Bagdá tem mais a ver com os acontecimentos no sul-xiita iraquiano do que com uma possível reviravolta na política unilateralista da doutrina Bush. Bremer foi perguntado diretamente se esta peregrinação a Nova York não seria para convocar a ONU para “tirar suas castanhas do fogo” – numa referência às resistências de Al-Sistani quanto às eleições em junho. “Acho que esta é uma pergunta legítima, e a ONU que tem experiência em eleições pode nos oferecer perspectivas. Nós estamos confiantes que o secretário-geral com toda a seriedade e urgência irá examinar a questão.” Em outras palavras, é isso mesmo: a ONU fará o papel da cavalaria americana, salvando as eleições no fim da fita.
Perigo xiita – O secretário Annan, porém, não deu o toque de ataque a seus cavaleiros para iniciar esta operação. O que ficou decidido é que as discussões sobre o assunto vão continuar, e que possivelmente uma missão de técnicos e analistas especialistas em eleições e segurança vai ao Iraque para estudar possibilidades. “Depois disso, caso o secretário decida recomendar a participação da ONU no processo eleitoral, a proposta será revista pelo Conselho de Segurança, que adotará, ou não, uma resolução neste sentido. Geralmente, em questões como esta o Conselho aprova as recomendações do secretário-geral”, explicou uma fonte do Conselho de Segurança. “De todo modo, há por aqui uma sensação de que os Estados Unidos voltaram à ONU com o rabo entre as pernas. Nós bem que avisamos…”, diz a fonte da diplomacia francesa.
Naquele mesmo dia, e nos dias seguintes, mais de 100 mil pessoas foram às ruas iraquianas exigindo eleições imediatas. Para Bremer, as demonstrações “mostram o que é uma democracia participativa. É por isso que fomos libertar o país”. Resta saber se, mesmo com a ajuda da ONU e eleições indiretas, esta democracia participativa não se transformará no Iraque numa ditadura de maioria xiita.