Há um ano, a deputada federal Zulaiê Cobra Ribeiro (PSDB-SP) assumiu a presidência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Foi a parte que coube à bancada do PSDB. Os partidos governistas não se interessaram pelo posto. Mal sabiam que a política externa seria uma das grandes estrelas no primeiro ano de governo Lula, o que acabou atraindo os holofotes para a comissão. A deputada, uma advogada criminal com 36 anos de atuação, é conhecida justamente por seu temperamento forte, por saber enfrentar brigas barulhentas. Sorte nossa. A parlamentar colocou as unhas de fora em maio do ano passado, em Portugal, para defender o direito dos brasileiros presos por estarem em situação irregular. Briguenta, ela não deixou de graça o comentário jocoso de uma parlamentar portuguesa a respeito dos brasileiros. Depois desse acordo, diz a deputada, os outros países passaram a olhar o Brasil com mais respeito. Apesar de tucana, ela elogia – mas com algumas ressalvas – o desempenho de Lula na política externa.

ISTOÉ – Qual a sua opinião sobre essa polêmica em torno do fichamento de turistas americanos nos aeroportos brasileiros?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Essa ação isolada do juiz é constrangedora. É uma atitude inédita. Em meus 36 anos de advocacia nunca vi isso. Já tivemos decisões estapafúrdias de juízes, mas em seguida elas foram cassadas. A atitude do juiz ganhou apoio popular. Mas o povo também apóia a pena de morte, a redução da maioridade penal e até atos extremos, como foi o massacre do Carandiru.

ISTOÉ – Mas diante do fichamento de brasileiros nos aeroportos dos EUA não é justo que apliquemos a reciprocidade?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Além de ser uma questão da diplomacia, e não da Justiça, é uma medida que vai trazer muitos prejuízos econômicos. O turismo vai perder muito, ainda mais nesta época de Carnaval. Não podemos nos nivelar por baixo. Não é porque os EUA erram que nós vamos errar também. A nossa exigência de reciprocidade deve centrar-se em outras questões, como o fim do visto para entrar nos EUA.

ISTOÉ – Como deve ser a relação do Brasil com os Estados Unidos?
Zulaiê Cobra Ribeiro

O Brasil deve se impor. Os EUA estão ficando fragilizados. A postura do presidente Bush mudou. A invasão do Iraque o desgastou. Então, é a oportunidade que o presidente Lula tem de colocar as questões de reciprocidade no mesmo nível. Muito mais grave do que o fichamento é a situação dos brasileiros presos nos Estados Unidos. São 1.100 pessoas que estão nas prisões americanas e não cometeram crimes, estão apenas em situação ilegal. As comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado designaram um grupo para resolver esse problema. Conseguimos um acordo pelo qual todos esses presos serão enviados para o Brasil em quatro etapas. O primeiro grupo, de 260, chega ao Brasil, no aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, no dia 28 de janeiro. Duas levas voltarão em fevereiro e a terceira, em março. Cada vôo desse custa US$ 40 mil e quem vai pagar é o governo americano.

ISTOÉ – Qual a sua avaliação sobre a política externa do governo Lula?
Zulaiê Cobra Ribeiro

O Lula está indo muito bem. Apesar de ser tucana, não sou crítica de Lula, muito pelo contrário. Mas o PT está pagando a língua por ter criticado tanto o Fernando Henrique Cardoso por suas viagens. Lula conta com um ministro muito competente, mas Celso Amorim está passando por uma saia justa danada. Ele não pode falar, é subalterno. Ele quer cumprir o que o presidente manda, mas Lula muitas vezes é acorrentado pelo Marco Aurélio Garcia (assessor para assuntos internacionais). Ele tem ideologia, não tem uma visão diplomática, de carreira, politicamente correta. Não dá para o presidente Lula ficar com certas antipatias, que são visíveis em relação aos EUA. Vivemos um processo muito forte de terrorismo.

ISTOÉ – Mas é importante que o presidente Lula assuma o papel de liderança no continente e isso inclui uma postura firme diante dos Estados Unidos, não?
Zulaiê Cobra Ribeiro

O próprio Bush já falou que o Lula tem que liderar. Ele já reconheceu o potencial de Lula. Mesmo nós, da oposição, reconhecemos que ele tem esse potencial nas mãos, para liderar e negociar. O povo brasileiro espera isso do presidente e concorda com a necessidade de nos fazermos respeitar no mundo. O Brasil se sente desprezado. E os EUA nos causam muito esse complexo. Nós estamos caminhando hoje para ter com os EUA negociações em setores nos quais somos os melhores, como no agronegócio, por exemplo. Competimos com o aço, temos tecnologia para desenvolver o urânio no Brasil, somos privilegiados por Deus, na natureza, nas riquezas, no espaço marítimo. Fazemos aviões que concorrem com o Canadá, com a França. A Embraer é uma das maiores indústrias de aviões do mundo. Se temos tudo isso, temos talentos em todas as áreas, por que vamos discutir por baixo, por que essa cara feia?

ISTOÉ – O que a preocupa mais nesse momento de estremecimento na relação com os EUA?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Eu tenho muito medo de determinadas influências que o presidente Lula sofre, que o levam a ter um juízo de valor que ele
não deveria ter. Ele deveria ser impregnado mais pelas influências
dos ministros Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), e Roberto Rodrigues (Agricultura).

ISTOÉ – Ao assumir neste ano seu posto temporário no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil não ganhará mais destaque ainda na arena internacional?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Será agora em fevereiro. É uma experiência importante e o Brasil tem capacidade para cumprir este papel. Mas isso vai ter um custo para o País. Devemos ter observadores nos locais de conflito e soldados para as missões. Vamos pagar um preço.

ISTOÉ – O mundo vive um clima de insegurança diante do terrorismo. O governo brasileiro tem tomado medidas de segurança no plano interno?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Não. Nossas fronteiras estão abertas, com tráfico enorme de cocaína, de armas, de aviões. E há os aeroportos clandestinos, que os índios estão descobrindo. Nosso Exército está caindo, sem dinheiro, a Marinha se queixando de falta de verba todos os dias. Há verba no Orçamento para as Forças Armadas, mas elas acabam sendo contingenciadas. Isso não pode se repetir neste ano. Não há gasolina para abastecer os caças da Força Aérea que deveriam escoltar os aviões clandestinos para fora de nosso espaço aéreo. Precisamos de
mais caças e a Embraer tem. O ministro da Defesa, José Viegas, foi à Rússia no final de novembro. O governo quer comprar aviões russos, sendo que a Embraer está capacitada para vender seus caças para nós. Se o governo brasileiro não comprar nenhum caça da Embraer nesse processo de aquisição que está previsto para este ano, vamos colocar a boca no trombone. O governo precisa também sancionar a Lei do Abate (de aviões que invadem ilegalmente o espaço aéreo) já aprovada pelo Congresso desde a época do governo FHC. Outra questão gravíssima é a cooptação de índios brasileiros pelas Farc (a guerrilha colombiana). Recebemos essa denúncia na comissão, feita pelos próprios índios da Amazônia, que faz fronteira com a Colômbia.

ISTOÉ – Qual a sua análise sobre a política do governo para o Mercosul?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Precisamos criar o Parlamento e a legislação do Mercosul. O Executivo comanda politicamente e deveria agir nesse aspecto. Nós, congressistas, estamos muito envolvidos nisso, realizando discussões com os argentinos, uruguaios. Mas isso tudo é pouco. Não dá para pensarmos em Mercosul apenas em termos de comércio. É preciso
ter uma legislação específica. Por exemplo, um caminhão sai do
Paraná, leva mercadoria para Buenos Aires e ele quebra no Uruguai.
E aí, como é que fica? O caminhão sofre um assalto, ou atropela
e mata alguém? Qual é a lei que vale, a do Brasil, a do país de origem
do caminhão ou a do destino?

ISTOÉ – O que o governo tem feito para proteger os brasileiros que vivem em situação precária no Exterior?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Resolvemos um grave problema em Portugal, que se transformou em um marco. Tivemos muitos brasileiros presos lá por não terem visto. Eram quase 200 mil. Estive em Portugal em maio de 2003, a convite da Assembléia Nacional, mas as autoridades do governo português não me receberam. Fui com um grupo de mais três deputados e dois senadores. Arrumei uma baita confusão a ponto de o presidente Lula me chamar para conversar quando voltei. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, propôs que o governo enviasse uma missão para resolver o problema. A confusão foi a seguinte: estávamos numa reunião com deputados portugueses para discutir o caso dos brasileiros. A vice-presidente da Comissão de Relações e Defesa Nacional do Parlamento português falou que os brasileiros eram desclassificados. Eu não fico ouvindo. Rebati no ato. Falei que eu sou filha de portugueses por parte de pai e mãe. E que o brasileiro tem origem portuguesa, indígena e negra. Então, eu disse que se nós éramos desclassificados os portugueses também eram. Aí deu pau. O almoço foi péssimo. O ministro das Relações Exteriores não me recebeu, o primeiro-ministro, Barroso Durão, também não. Mas depois ele engoliu, em julho, na viagem que fiz acompanhando o presidente Lula, que teve um gesto muito decente. Se há uma coisa que eu vou agradecer ao presidente Lula o resto da vida é isso. Não eu, mas o Brasil. Eu integrava a comitiva de Lula na viagem a Portugal e Espanha e o presidente fez questão de me elogiar publicamente, de me apresentar aos governantes, inclusive ao primeiro-ministro português.

ISTOÉ – O que o Brasil conseguiu com a negociação?
Zulaiê Cobra Ribeiro

O dia 11 de julho de 2003 é uma data histórica porque assinamos três acordos, de tal maneira que a situação de 70 mil brasileiros ilegais que entraram no país até aquele dia pôde ser regularizada, desde que eles fossem para a Espanha para pedir o visto permanente, e não precisassem voltar para o Brasil, como queriam as autoridades portuguesas. Muitos são casados, têm filhos, pagam impostos para o governo português, mandam dinheiro para o Brasil. Não são marginais. O que gerou o endurecimento com os imigrantes foi a aprovação, em março de 2003, da nova lei dos estrangeiros pela União Européia, uma tentativa de conter a invasão que vem do Leste Europeu, principalmente. Mas o caso dos brasileiros não pode ser comparado com o dos imigrantes do Leste Europeu, que são infinitamente mais numerosos. O Brasil e Portugal têm uma legislação anterior a essa da União Européia, de reciprocidade e integração total.

ISTOÉ – Essa pressão do Brasil que surtiu efeito em Portugal teve desdobramentos em outros países, onde temos muitos brasileiros em situação irregular?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Criamos um impacto na União Européia a partir do acordo entre Brasil e Portugal. Estamos tratando agora com a Espanha e com
a Itália. Brasileira na Itália é tratada como prostituta. Uma amiga minha que foi à Itália, chefe do departamento jurídico de uma grande empresa no Brasil, alugou carro para andar pelo país e teve que falar que era portuguesa. Se dissesse que era brasileira, os convites seriam indecorosos e descarados. Hoje está mais fácil trabalhar com outros países. Os brasileiros sofrem vários tipos de violência lá fora. Somos humilhados nos aeroportos. Um brasileiro de origem simples que desembarca em Portugal é logo separado no aeroporto e tem seu passaporte confiscado. Essa pessoa é mandada de volta para o Brasil no vôo seguinte. E o que é pior: as autoridades portuguesas entregam
os passaportes nas mãos dos tripulantes dos aviões brasileiros. Os passaportes só são devolvidos na hora em que a pessoa chega ao Brasil. Esses tripulantes são funcionários de empresas privadas brasileiras, não são do governo brasileiro. Jamais poderiam reter os passaportes. É uma prisão dentro de um avião brasileiro. No meu avião, de volta de Portugal, em maio do ano passado, havia três brasileiros nessa situação. Quando vi, falei com o comandante para devolver os documentos. Já intimei todas as empresas aéreas brasileiras para prestar esclarecimentos à Comissão de Relações Exteriores. Outro fato grave que acontecia até pouco tempo atrás é que os próprios diplomatas brasileiros não tinham acesso às salas dos aeroportos em Portugal, para onde são levados os brasileiros que são interrogados.

ISTOÉ – Além da situação irregular, há também o problema da prostituição lá fora. O que pode ser feito?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Há quadrilhas organizadas que vivem da prostituição de brasileiros no Exterior. Aí entra o trabalho do Itamaraty, do Ministério Público Federal, do Ministério da Justiça. Temos que elaborar legislações específicas para cada país com o objetivo de trazer de volta essas pessoas. Não dá para ter criminosos brasileiros, presos lá fora, ao relento, em países com legislações diferentes, que eles não entendem.

ISTOÉ – A sra. acompanhou o presidente Lula no Exterior. Pôde observar o carisma dele lá fora?
Zulaiê Cobra Ribeiro

Sem dúvida. Fiquei impressionada com o carisma de Lula em Portugal e na Espanha. Eu via a rainha Sophia e o rei Juan Carlos, da Espanha, olharem para ele, admirados. Eu sou querida pelo PT, eu sou uma mulher que os petistas respeitam, o Lula me adora.