28/01/2004 - 10:00
De nada adiantariam as máscaras, luvas cirúrgicas e óculos usados pelos corajosos que remaram nas águas fétidas do rio Tietê, durante a comemoração dos 450 anos de São Paulo. Só o escafandro de um mergulhador, quem sabe, protegeria a pele contra as substâncias despejadas em certos trechos do rio, cujo leito alimenta a história da maior metrópole do País. Ao longo de décadas, o Tietê foi uma espécie de depósito a céu aberto. Além do esgoto, suas margens serviram de refúgio para todo tipo de lixo, o que inclui desde rejeitos químicos até sofás, cadáveres, pedaços de corpo, sandálias de dedo e a incrível marca de 120 mil pneus.
Difícil crer, mas o Tietê nasce cristalino, em Salesópolis, a 22 quilômetros do Atlântico. Rebelde, contradiz o curso natural das águas ao se afastar do oceano e serpentear pela serra do Mar. Com as sucessivas investidas para retificar suas margens e gerar energia, pouco restou dos tempos áureos, a não ser a sujeira e as costumeiras inundações. O debate sobre a eterna limpeza do Tietê sempre acirrou paixões. Dessa vez, o rebaixamento da calha deu origem a um imbróglio público e, nos bastidores, a uma troca de acusações que envolve governo, Ministério Público, Justiça, ecologistas e oportunistas.
Financiada em parte pelo banco japonês JBIC, a obra de R$ 688,3 milhões percorreu caminho tão tortuoso quanto o rio. Desde que os caminhões começaram a trabalhar, no início de 2002, uma sucessão de liminares transformou num vai-e-vem a retirada do lodo e seu depósito no aterro de Carapicuíba, rota de passagem para quem sai
dos condomínios luxuosos de Alphaville, em Barueri, em direção ao rodoanel. Na semana passada, enquanto a procuradora federal Rosane Campioto pedia a abertura de inquérito para apurar irregularidades no depósito de lixo na lagoa, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) inaugurava, em outro trecho, uma espécie de elevador sobre as águas para vencer um desnível do rio e facilitar a retirada de 300 toneladas de lodo e tranqueiras do Tietê, de caminhão.
Lixão público e depósito do esgoto da redondeza, a lagoa nasceu
como um poço de mineração de areia. No ano passado, ecologistas denunciaram que entre os quatro milhões de metros cúbicos ali
aterrados haveria substâncias nocivas. “Há indícios de crime ambiental
e queremos saber quem são os responsáveis”, disse a procuradora Rosane, autora da ação civil e das liminares para impedir o uso do aterro. Suas reivindicações foram desautorizadas em 18 de dezembro, quando um juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que não havia evidências de risco para justificar a paralisação da obra.
Com isso, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee) recebeu sinal verde para retomar os trabalhos. Por precaução, depositou o entulho sem contato com a água da lagoa. Se fosse para tratar essa montanha em aterro especial, seriam precisos R$ 170 milhões. “É como alugar um apartamento para o resto da vida, só para depositar lixo”, compara Ricardo Borsari, superintendente do Daee.
Em maio do ano passado, quando a poluição da lagoa provocou uma mortandade de peixes, o Ministério Público Estadual convocou especialistas para estudar o solo de Carapicuíba. A junta científica do Instituto de Ciência e Tecnologia em Resíduos e Desenvolvimento Sustentável (ICTR) inclui engenheiros, biólogos e doutores de duas universidades, a Unicamp, de Campinas, e a USP, de São Carlos, além de um laboratório particular. Os estudos foram feitos de graça e o laudo constatou a presença de materiais tóxicos em cinco dos seis pontos analisados. Ali foram achados metais pesados como cádmio, chumbo e cromo total, alguns de efeito cancerígeno, e pesticidas como o heptacloro. “Num dos pontos, a presença de heptacloro é 80 vezes superior ao limite permitido; em outro, ela é 20% maior do que deveria”, afirma Sabetai Calderoni, diretor executivo do ICTR. “O certo seria aprofundar os estudos para avaliar o impacto ao ambiente e à saúde”, afirma. O Daee defende cautela: o relatório é preliminar e contém dados contestáveis, que não condizem com outras análises feitas pela Cetesb, o organismo responsável pelo controle ambiental do Estado.
O destino da lagoa de Carapicuíba será definido na reunião do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), no dia 28. Até lá, os técnicos do governo se apóiam em suas análises, que não indicam nada além de alumínio, ferro e manganês, elementos abundantes no solo paulista. “Atuamos dentro da lei e seremos os primeiros a evitar danos à população”, assegura Borsari.