O escritor, cronista e cartunista gaúcho Luis Fernando Verissimo, mestre em retratar as pequenas comédias da vida privada, tornou-se nos últimos tempos um bom analista dos dramas da vida pública – do Brasil e do mundo. É assim que ele entra na mais recente polêmica, política e religiosa, envolvendo o mundo ocidental e o mundo islâmico, a partir de uma charge publicada num jornal dinamarquês – o mote da charge foi Maomé. No Brasil, outras são as polêmicas, e o bem-humorado Verissimo também está atento a elas – isso quando não é o seu próprio epicentro, como no caso das críticas que recebeu do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC disse: “Ele escreve bem, mas não entende nada.” Ele, no caso, é Verissimo. Eis a sua resposta: “Gostei mais da primeira parte da observação do ex-presidente, mas concordo com a segunda: cada vez entendo menos.” Na verdade, a política tem sido um dos temas prediletos das crônicas que atualmente ele publica nos jornais. Decepcionado com Lula, de quem esperava gestos mais à esquerda, e contrário ao ideário neoliberal que guiou a gestão de FHC, Verissimo exercita a serenidade para criticar um lado e outro. “A desilusão com esquerdistas que não fazem o que diziam não é coisa do governo Lula”, diz ele. “E isso já tem 11 anos.”

Freqüentador assíduo das listas de best-sellers, Luis Fernando Verissimo, 69
anos, é um dos autores brasileiros mais lidos da atualidade. O seu bunker é
ainda a casa em Porto Alegre na qual ele mora desde os cinco anos e da qual saiu apenas para temporadas no Rio de Janeiro, em São Paulo e nos EUA. Sempre volta porque, como diz, ali mantém uma “base emocional sólida”. É onde produz os seus livros e as suas crônicas – e conta com a ajuda da mulher, Lúcia, para filtrar
as inúmeras solicitações da imprensa e convites para eventos. Nessa entrevista
que concedeu a ISTOÉ, além da crise entre o Ocidente e os países islâmicos ele
fala sobre a temporada de presidentes de esquerda na América Latina e trata de uma de suas grandes paixões – a Copa do Mundo (desde 1986 ele assiste a todos os mundiais). A entrevista foi concedida em um momento no qual Verissimo busca inspiração para mais um projeto: escrever romances baseados em comédias de William Shakespeare.

ISTOÉ – De que forma o sr. vê a reação de países islâmicos à charge de Maomé publicada num jornal dinamarquês?
Luis Fernando Verissimo

Um dos princípios não declarados, e obviamente utópicos, do humor é que nada é sagrado. Lembro de um humorista americano que costumava terminar as suas apresentações perguntando: “Há alguém aqui que eu ainda não ofendi?”

ISTOÉ – Às vezes, o humor ofende?
Luis Fernando Verissimo

 A ofensa não é imprescindível para o humor, mas a irreverência é. No Ocidente, a irreverência é um direito presumido do humorista.
 

ISTOÉ – Por quê?
Luis Fernando Verissimo

Porque a nossa tradição é a do bobo da corte. E o bobo da corte tem licença para caçoar do rei com o único risco de o rei não entender a piada e dar um chute nele.
 

ISTOÉ – E no mundo islâmico?
Luis Fernando Verissimo

No mundo islâmico, a irreverência religiosa é inconcebível, tudo que tem a ver com Deus e seu Profeta é sagrado. Entre o nada e o tudo seria só um problema geográfico, de mundos e culturas distintas, se não entrassem no meio a motivação das charges num jornal dinamarquês supostamente racista e a motivação política dos protestos no Islã. E aí o assunto foge da competência dos chargistas. Eu só sei que não gostaria de ser o bobo da corte na corte do califa.
 

ISTOÉ – Como o sr. recebeu a crítica de Fernando Henrique, para quem o sr. “escreve bem, mas não entende nada”?
Luis Fernando Verissimo

Não vi o programa Roda Viva em que ele disse isso, me contaram. Parece que fizeram uma pergunta baseada em alguma coisa que eu escrevi e ele disse que eu escrevia bem, mas não sabia o que dizia. Gostei mais da primeira parte da resposta, mas não foi uma coisa antipática.
 

ISTOÉ – O sr. ficou surpreso?
Luis Fernando Verissimo

O Fernando Henrique Cardoso foi sempre muito elegante com relação às críticas, e não só as minhas, que recebeu quando era presidente. É um democrata. E no fundo tem razão, eu cada vez entendo menos.
 

ISTOÉ – Invertamos o foco: que impressão o sr. tem do ex-presidente Fernando Henrique?
Luis Fernando Verissimo

Não o conheço pessoalmente, temos alguns amigos em comum. Sempre simpatizei com a sua figura. Cheguei a escrever que foi o melhor presidente que já tivemos, em estampa e qualidades intelectuais. Coisa de Primeiro Mundo, como a Daslu.
 

ISTOÉ – Alguma decepção?
Luis Fernando Verissimo

Era o que de melhor o nosso patriciado tinha para oferecer e acho que deu uma respeitabilidade, com sua biografia e suas credenciais de esquerda, a um governo conservador e submisso que não a merecia. A desilusão com esquerdistas que não fazem o que diziam não é coisa do governo Lula. Já tem 11 anos.
 

ISTOÉ – Depois de três anos de governo, como o sr. avalia o mandato de Lula?
Luis Fernando Verissimo

Uma coisa é certa: ninguém pode dizer que o governo Lula está sendo o que se esperava. Surpreendeu quem esperava o desastre e quem esperava o começo da redenção. Quem poderia prever que três anos de um governo do PT terminassem com banqueiros e rentistas tão contentes? Ao mesmo tempo, algumas coisas no campo do social e na política externa são boas novidades. Nota 5.

ISTOÉ – O que mais o decepcionou: as denúncias de corrupção ou o estilo de política econômica?
Luis Fernando Verissimo

A decepção com a política econômica é mais antiga, é do começo do governo Lula. A corrupção é lamentável, e mais lamentável ainda foi a maneira como o PT lidou no começo com as denúncias. O PT ainda não se purgou como deveria, e não sei qual vai ser o efeito eleitoral disso tudo.
 

ISTOÉ – Por quê?
Luis Fernando Verissimo

Os dólares na cueca ainda vão fazer estragos. A grande hipocrisia nesse assunto da corrupção é tentar caracterizar como uma crise da esquerda o que na verdade é um paroxismo da
questão da influência do dinheiro no processo político, sem falar no comportamento humano. O PT paga pela sua pregação ética desmoralizada, mas a crise também é da direita.
 

ISTOÉ – O sr. admite votar novamente no presidente Lula?
Luis Fernando Verissimo

Vamos ver quais são as opções.
 

ISTOÉ – Acha que o PSOL pode ser uma boa alternativa para os eleitores de esquerda?
Luis Fernando Verissimo

É uma opção simpática, não sei se é viável. O bom de apoiar um PSOL sem chances de vencer é poder voltar a ser oposição. E sem se preocupar com o que se está sendo cúmplice. O chato de estar no coro dos críticos do PT e do governo é de repente olhar em volta e ver quem são os outros.
 

ISTOÉ – Ultimamente suas crônicas têm abordado mais a política e menos as pequenas comédias do dia-a-dia. Por quê?
Luis Fernando Verissimo

Tem gente que acha o contrário, que antes eu criticava o governo e agora escrevo sobre a nouvelle-cuisine. Injustiça.
 

ISTOÉ – Explique melhor.
Luis Fernando Verissimo

Eu sempre escrevi sobre frivolidades como a política e coisas sérias como a gastronomia. Antes, com a coluna diária, os assuntos eram mais variados. Agora é preciso escolher, e certos temas atuais se tornaram obrigatórios. No fim a gente tem um certo pânico da irrelevância. Não há nada de mal em escrever bobagens, mas tudo tem hora.
 

ISTOÉ – O sr. acredita que o intelectual tem obrigação de se posicionar politicamente?
Luis Fernando Verissimo

Acho que ninguém tem a obrigação de ser ou de fazer aquilo que não quer ou não pode. Quem quer e tem espaço para isso deveria dar um testemunho sobre o seu tempo, mas isso não implica nenhum tipo de engajamento obrigatório.
 

ISTOÉ – O que acha da multiplicação de presidentes de esquerda na América Latina?
Luis Fernando Verissimo

 Em primeiro lugar, tem de ver quem vai durar. Esse boliviano, sei não. Mas o importante é que parece estar acabando o ciclo da doutrina da escola de Chicago que se seguiu ao ciclo da doutrina de segurança nacional ditado pela guerra fria. Nem os generais nem os neoliberais tinham a solução para os problemas históricos da América Latina. A nova onda vale mais pelo que não é do que pelo que é, pois inclui gente muito diferente. Quem sabe também não teremos um dia um governo de esquerda no Brasil…

ISTOÉ – Com a desilusão na política nacional, a violência urbana, o terrorismo no mundo, como consegue inspiração para fazer humor?
Luis Fernando Verissimo

Quem consegue manter a cabeça, quando todos à sua volta estão perdendo a sua, é porque ainda não se deu conta da gravidade da situação. Pretendo protelar o mais possível o momento de me dar conta e parar de rir.
 

ISTOÉ – Futebol é sua paixão. Qual a sua expectativa com a Seleção Brasileira?
Luis Fernando Verissimo

Meu medo é o triunfalismo exagerado, como aconteceu em 1982, quando a nossa seleção também era imbatível. Acho que o Carlos Alberto Parreira deve treinar humildade. Vai ser um pouco difícil jogar com sandálias franciscanas em vez de chuteiras, mas acho recomendável.
 

ISTOÉ – Com tantas inovações tecnológicas e novos meios de expressão, qual é o futuro da literatura?
Luis Fernando Verissimo

Olha, eu só vou me preocupar quando inventarem o computador que escreve sozinho,
sem necessidade de escritor. Provavelmente no
ano que vem.
 

ISTOÉ – Está escrevendo algum livro?
Luis Fernando Verissimo

Estou tentando escrever. A Objetiva pediu, para três escritores, romances baseados em comédias de Shakespeare. O Jorge Furtado, a Adriana Falcão e eu. O livro do Jorge Furtado deve estar sendo lançado agora. O da Adriana já ficou pronto. É um complô para me pressionar.