01/03/2006 - 10:00
Na terça-feira de Carnaval fará 20 anos que o Brasil colocou o pé na avenida em direção à apoteose da inflação civilizada. Em 28 de fevereiro de 1986 era lançado o Plano Cruzado, o mais ousado programa de combate à inflação tentado no País e, até então, o abre-alas do enredo heterodoxo. A tarefa coube a José Sarney. Ele virara presidente na esteira da doença que matou Tancredo Neves. Sem equipe, sem apoio e, como o próprio Sarney lembra a ISTOÉ, sem legitimidade. Os ocupantes de todos os cargos, do primeiro ao terceiro escalão, estavam definidos por Tancredo. Sarney assumiu ministros que nem sequer conhecia. “Construí um planejamento estratégico para minha legitimação, e a tranqüilidade econômica era parte desse processo”, lembra. O presidente, então, impôs uma prescrição clara: o Cruzado não poderia ter arrocho. “Se eu fizesse uma recessão, seria deposto”, avalia. O plano durou breves nove meses, e no quarto mês já rateava: o congelamento de preços era desafiado pela maquiagem de produtos, ágio, sumiço de estoques e desabastecimento.
Em 21 de novembro de 1986, seis dias após as eleições de governadores, senadores e deputados que o PMDB faturou, o Cruzado fracassou sob a pecha de estelionato eleitoral. Foi encerrado pelo Cruzado II, que extinguiu o congelamento, aumentou impostos de cigarros e bebidas e trouxe a inflação de volta. “Se hoje eu pudesse escolher entre assinar o Cruzado II e ter a mão cortada, preferiria ficar sem a mão”, admite o ex-presidente. Dono de um conhecido autocontrole, ele jura que nunca foi às lágrimas, mas, a seu modo, chorou em pelo menos um caso: em junho de 1987, quando seu ônibus foi atacado por uma multidão a pedras e picaretas no centro do Rio de Janeiro. “Como se diz no Nordeste, homem chora com a garganta”, diz Sarney sobre o episódio, batizado de “picaretaço”.
Mas o Cruzado, que na gestação era chamado de “Alfa” e teve entre possíveis
nomes “Cristal”, “Del Rey” e, curiosamente, “Real”, foi modelo para as tentativas de desindexação da economia que se seguiram, até a vitoriosa empreitada de FHC. “Eu tive a coragem de abrir o laboratório”, afirma o ex-presidente, reagindo à avaliação de que por conveniência eleitoral retardou os ajustes do plano. “Ninguém me propôs suspender o congelamento.” Para ele, o que vitimou o Cruzado foi a falta de consenso. “A divergência entre as equipes do Dilson (Funaro, da Fazenda) e do Sayad (João, do Planejamento) foi trágica.” Mas, é bom registrar, enquanto o Cruzado durou nunca se viu tanta euforia e mobilização popular. “Guardei 80 mil cartas, mas recebi dez vezes mais que isso.” É dessas lembranças que o ex-presidente mais gosta.