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DESAFIO À GRAVIDADE O Sr. Fredricksen, o escoteiro Russell e o cão Dug, que fala por meio de uma coleira: família improvisada

Ao anunciar que faria um desenho animado sobre um ratinho gourmet, a produtora americana Pixar recebeu um banho de água fria. Um ratinho animado depois de Mickey? Mas “Ratatouille”, o filme prometido, foi um sucesso. Depois, a empresa que mais arrisca no terreno da animação declarou que levaria às telas um robô perdido no devastado planeta Terra.

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NA FLOR ESTA A ave rara Kevin mostra o lado ecológico do filme

Novamente a reação foi de descrença: e “Wall-E” foi outro campeão de bilheteria. O próximo passo seria mais ambicioso: um filme em que o herói, um homem de 78 anos, aposentado, viúvo e ranzinza, moraria sozinho em sua casa cercada por arranha-céus. Antes de “Up – Altas Aventuras” ter sido lançado no Festival de Cannes em maio passado (foi o primeiro desenho animado a ter essa honra), ninguém acreditava que essa história levaria alguma criança aos cinemas – e muito menos que rendesse um enredo apropriado a um arrasa-quarteirão de Hollywood. Pois bem: a décima produção da Pixar, hoje associada à Disney, já bateu os US$ 400 milhões de faturamento, está entre os 20 desenhos mais vistos de todos os tempos e deve aumentar o seu lucro quando estrear no Brasil na sextafeira 4. É claro que a marca desse estúdio já virou sinônimo de diversão de qualidade, atraindo tanto os pais como os filhos aos quais suas obras são endereçadas. Mas no caso de “Up” o marketing é o que menos pesa: o filme é mesmo muito bom e, em diversos momentos, até lembra as melhores produções de Walt Disney, o grande mestre do gênero.

"Queríamos mais “Dumbo” e menos “Guerra nas Estrelas”
Pete Docter, cineasta"

Não se impressione com o fato de essa animação ter sido lançada em 3D. Isso não faz a menor diferença, já que na uma hora e meia de projeção pouca coisa voa em direção ao nariz do espectador. A revista “Variety”, especializada no mercado cinematográfico, até aconselhou ver o filme no formato normal e usufruir, assim, das cores fantásticas geradas pela equipe de artistas gráficos (o projetor que exibe em três dimensões faz a fotografia perder o brilho). Cores, luminosidade, 3D – tudo isso são grandes atrativos: mas o bom mesmo em “Up”, que levou cinco anos para ser feito e reuniu 70 animadores, é a sua história e a maestria com que ela é contada.

Na abertura dessa deliciosa aventura digital, se é apresentado a um menino muito tímido, que quase não fala, chamado Carl Fredricksen. Ele é fanático pelo viajante e explorador Charles Muntz cujas expedições a bordo de um balão o levaram ao mundo selvagem das florestas tropicais atrás de animais desconhecidos, entre eles uma ave de mais de dois metros de altura e plumagem vistosa. Carl descobre que sua vizinha, uma garota espevitada de nome Ellie, também sonha em viajar para as florestas. Ficam amigos, crescem, casam-se, planejam ter filhos, descobrem que não podem tê-los e são separados pela vida quando ela morre e ele fica viúvo e sozinho. Mas espere: tudo isso é contado em menos de cinco minutos e sem nenhum diálogo. É só então que “Up” realmente se inicia. Acossado por empreendedores imobiliários de olho em sua casa, o Sr. Fredricksen agride um mestre de obras, é julgado e recebe como pena passar o pouco tempo que lhe resta num asilo para idosos. Como era vendedor de balões, tem uma ideia anárquica: ata 20 mil bexigas coloridas em sua casa e parte com ela em direção à América do Sul, realizando assim o sonho de sua mulher. “Queríamos mais ‘Dumbo’ (filme de Walt Disney) e menos ‘Guerra nas Estrelas’”, disse o diretor Pete Docter ao jornal americano “The New York Times”.

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Cinéfilos antenados vão identificar citações a “O Mágico de Oz”, aos filmes do japonês Hayao Miyazaki e até a “Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Para não tirar o prazer das surpresas, basta dizer que nessa viagem o Sr. Fredricksen vai estar acompanhado de um garoto de 8 anos chamado Russell, um escoteiro gordinho, falador e metido a sabetudo que só precisa ajudar um idoso para ganhar o título de Explorador Sênior da Vida Selvagem. É um dos personagens mais graciosos inventados pela animação nos últimos anos. Ao chegar ao seu destino, o garoto e seu “vovô adotivo” vão se deparar com cães que falam várias línguas (graças a uma coleira eletrônica que lê seus pensamentos) e com o tal bípede plumado que só existe nessa floresta. Russel aprende que o bicho adora chocolate e o apelida de Kevin. Vão descobrir também que o famoso explorador, vivendo anônimo no lugar, esconde um temperamento de louco e vilão. Ao criar personagens tão interessantes, o diretor Pete Docter (de “Monstros S. A.”) quis chegar ao que chama de “simplexity” (simplexidade), marcando os tipos com feições bem diretas, quase caricaturais. O Sr. Fredricksen, por exemplo, tem um rosto quadrado – segundo o diretor, essa forma define uma pessoa resistente a mudanças. Já o garoto foi desenhado com traços arredondados, símbolo da mobilidade. Seja como for, o que importa é a interação entre os dois personagens separados por sete décadas e como essa relação leva um homem a redescobrir o prazer da aventura. De carona com o vovô voador, quem ganha asas é a imaginação do espectador. É uma ótima viagem.