A cena é um tanto insólita. Num protesto sui-generis, 60 parlamentares iranianos tiraram os sapatos e, desde o domingo 11, estão sentados em posição de lótus no Majlis (Parlamento). A manifestação é contra a decisão do Conselho de Guardiães em barrar o nome de 3.600 candidatos reformistas a participar das eleições parlamentares marcadas para o dia 20 de fevereiro. O Conselho tem poderes para vetar candidatos e é responsável pela organização das eleições de acordo com a Constituição e com as leis islâmicas no Irã. A justificativa usada pelos clérigos para desqualificar os candidatos é a de que eles não estariam respeitando essas leis islâmicas. O país está rachado entre os que se submetem ao regime teocrata e os reformistas que desejam reduzir a interferência do clero no Estado. Entre os reformistas eleitos estão 87 deputados – de um total de 290 – proibidos de participar na próxima votação. O líder deles, o moderado presidente Muhamad Khatami – eleito em 1997 e reeleito em 2001 –, pediu calma. Mesmo com a intervenção do líder religioso supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, que pediu ao Conselho para rever sua decisão, os reformistas não sossegaram. E o embate prossegue. “Continuaremos nosso protesto até que atendam nossas exigências”, declarou Mohammed Reza Khatami, irmão do presidente e chefe da Frente da Participação, o principal partido reformista iraniano, que está liderando as manifestações.

Nesse contexto de disputa de poder, a população iraniana, por enquanto, está apática. Se antes saía às ruas apoiando o líder Khatami, hoje há um visível descontentamento com as promessas não cumpridas pelo presidente. Entre elas, a de abrandar o poder do Conselho de Guardiães, o que obviamente não aconteceu. No ano passado, o Parlamento aprovou um projeto lei que daria menos poderes ao membros do Conselho. Mas, ele foi vetado pelo próprio “Guardiães”. Khatami está de mãos amarradas com um Judiciário controlado por uma maioria conservadora, que tem bloqueado qualquer tentativa de reforma.

Os seguidores de Khatami são na maioria jovens que nasceram depois da revolução islâmica de 1979, com bom nível de educação e ávidos por mudanças. Mas, hoje, esses estudantes que há cinco anos lotaram as ruas de Teerã em gigantescas manifestações em favor de mudanças olham com desconfiança para a capacidade do líder moderado de levar em frente as reformas. Cresce o número de iranianos que desejam a separação do poder religioso do Estado e essas modificações só aconteceriam com mudanças na Constituição. Metade da população do Irã tem menos de 20 anos e não suporta mais as restrições de não poder injerir álcool, dançar, vestir roupas ocidentais e estar em lugares frequentados por ambos os sexos.

Na queda-de-braço entre conservadores e reformistas, a apatia vence. Nas eleições do ano passado, a abstenção nas urnas foi de 12% e esse índice pode aumentar, caso haja realmente uma vitória dos linha-dura. E essa apatia foi sabiamente calculada para entrar no jogo dos conservadores, planejado há meses. Sem apoio popular e sem força para avançar na transição política, Khatami pode ser levado a renunciar. O presidente já afirmou que não pretende deixar o cargo. Mas, caso seja mantida a decisão de impedir o acesso dos reformistas ao poder, talvez não reste nenhuma alternativa a não ser renunciar. Com ele, viria uma enxurrada de membros de seu governo. Hoje, cerca de 70% do Parlamento está nas mãos dos reformistas. O único com poder para interferir nesse processo é o aiatolá Ali Khamenei. Dos 12 membros do Conselho de Guardiães, seis são seus aliados.

Se não houver intervenção direta do aiatolá, resta saber se os conservadores querem levar em frente esse jogo perigoso. A comunidade internacional já deu sinais de desaprovação. Durante visita ao Irã para estabelecer acordos de cooperação, Javier Solana, chanceler da União Européia, afirmou que “seria muito difícil explicar a decisão do Conselho de Guardiães aos líderes europeus”. O momento é delicado para o Irã, que consta da lista do “eixo do mal” da política do presidente americano George W. Bush por supostamente apoiar o terrorismo e tentar obter a bomba atômica. Teerã nega que esteja construindo um arsenal nuclear e insiste em afirmar que seu programa é apenas para a produção de energia. Solana foi também ao Irã para negociar uma possível inspeção das Nações Unidas nas instalações nucleares iranianas. “As autoridades iranianas se mostraram compromissadas e eu gostaria de ver uma contínua cooperação”, afirmou Solana.

O governo iraniano necessita do apoio dos europeus para fazer a ponte com a Casa Branca. Hassan Rowhani, presidente do Conselho de Segurança Nacional do Irã, disse em Paris na quinta-feira 15 que rejeita “a interferência de qualquer país nos assuntos internos iranianos”. E ainda disse que as eleições presidenciais nos EUA foram catastróficas. Isso foi em resposta às críticas do chanceler francês Dominique Villepin, que pediu eleições livres para o Irã. Mas ainda é incerto se a pressão da comunidade internacional pesará na atuação do Conselho. Até o dia 9 de fevereiro deve ser publicada a lista final de candidatos. Até lá, os sapatos dos deputados podem continuar estacionados no Parlamento.