De um lado do ringue, os Estados Unidos, com apoio do Canadá, México e atores secundários.
Do outro, Brasil, Argentina, Venezuela e um grupo de países sem muito dinheiro, mas não querendo engolir o prato feito.
No meio, a discussão entre a ênfase aos temas sociais, como a distribuição de renda, o combate à fome e à miséria e a insistência americana em incluir a esvaziada Área de Livre Comércio das Américas (Alca) como tema-chave da Cúpula Extraordinária das Américas, realizada nos dias 12 e 13 deste mês, em Monterrey, no México. Todos esses fatores faziam com que o fantasma de Cancún, a fracassada reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada no balneário mexicano no final de 2003, pairasse sobre o encontro que reuniu 34 países. O problema é que, ao contrário do que acontecia havia alguns anos, Brasil e companhia deixaram de ser os vizinhos dóceis e obedientes à potência dominante. O alerta para George W. Bush tinha sido dado pela própria imprensa americana. Para o Los Angeles Times, um dos três maiores jornais dos EUA, Bush iria ter pela frente “uma nova liderança continental que deu uma guinada à esquerda e passou a falar grosso com os EUA”. O jornal americano destacou que as reformas econômicas feitas na última década, com apoio dos EUA, “fizeram muito pouco pelos 220 milhões de pobres, quase a metade da população da região”.

Como o presidente americano não lê jornais e revistas, conforme denunciou a imprensa dos EUA, George W. Bush chegou ao México desinformado. Monterrey só não virou Cancún porque os EUA, diante do impasse iminente, puxaram o freio de mão e aceitaram que a Alca fosse mencionada apenas em um dos 59 parágrafos da declaração final assinada por 34 presidentes e primeiros-ministros. Mais ainda: a ênfase do documento, chamado de Carta de Novo León, citando o Estado mexicano onde fica Monterrey, ficou mesmo nas questões sociais. Assessores da Casa Branca reconheceram que o governo Bush teve que recuar para evitar o agravamento das tensões com a América Latina.

“Houve uma mudança clara em relação à receita econômica tradicional.
O documento de Monterrey destaca a implantação de políticas sociais ativas, como o Fome Zero, renda mínima, seguro-desemprego, Bolsa-Escola, e Bolsa-Saúde”, afirmou a ISTOÉ o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Segundo o chanceler, até a menção à Alca
que terminou enxertada no relatório foi feita dentro da ótica de Brasil e Argentina. Enquanto os americanos queriam enfatizar a data de 1º de janeiro de 2005, o texto fala, da maneira mais genérica possível, em “acordo sobre a estrutura e o calendário adotado para a conclusão das negociações da Alca nos prazos previstos”. No jargão diplomático, é quase um convite ao adiamento.

Para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Cúpula das Américas serviu para que ele defendesse, em escala mundial, uma mudança na economia do continente. “A experiência histórica mostra que o equilíbrio econômico é insustentável sem o equilíbrio social. Devemos trabalhar com um novo conceito de desenvolvimento em que a distribuição de renda não é mera consequência do crescimento, mas sua alavanca fundamental”, afirmou. Lula disse que a década de 90 foi “a década do desespero”, mostrando que, na América Latina, o número de pessoas em extrema pobreza passou de 48 milhões para 57 milhões. Ele disse que o modelo econômico adotado era perverso, pois “separou equivocadamente o econômico do social, opôs estabilidade a crescimento e divorciou responsabilidade e justiça”. Lula aproveitou para divulgar dados do Fome Zero, que hoje alcança 1,9 milhão de famílias antes indigentes, e anunciou que o Bolsa Família já ajuda cerca de 14 milhões de pessoas, devendo chegar a 50 milhões de beneficiados até 2006.

Lula não se limitou ao discurso formal no plenário da Cúpula. Logo na segunda-feira 12, ele mostrou que não estava no México para bancar o simpático aos americanos. Um de seus primeiros compromissos foi um almoço, oferecido pelo Brasil ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, notório desafeto de Bush. Chávez fechou questão com as posições brasileiras, ganhando apoio à sua proposta de criação de um fundo internacional de ajuda a países em crise. No almoço, o bloco de vizinhos indóceis começava a mostrar suas garras. Lula também se reuniu com o anfitrião Vicente Fox, do México, com o primeiro-ministro do Canadá, Paul Martin, e com os presidentes do Paraguai e Peru. O presidente não chegou a ter reuniões formais com o seu parceiro argentino Néstor Kirchner. Nem foi preciso. Os dois países tinham feito a lição de casa antes e chegaram ao México falando a mesma língua, a favor do social.

Guerra digital – No entanto, o encontro mais esperado era mesmo
com George W. Bush. A reunião, na noite da mesma segunda-feira,
durou 35 minutos (estava prevista para apenas 20 minutos) e foi
marcada pela polêmica sobre o fichamento de brasileiros ao desembarcarem nos Estados Unidos e a adoção de procedimento
igual pelo Brasil . E Lula começou a conversa pedindo a Bush que
os brasileiros não fossem mais fichados nos aeroportos e portos
dos EUA, como já ocorre com 27 países. Bush, que tinha antes
justificado a medida como proteção contra o terrorismo, ficou,
segundo testemunhas da conversa, surpreso ao saber que o controle
não era para todo mundo. Lula então puxou da manga mais um dos baralhos de ases preparados pelo Itamaraty: a proposta de acordo diplomático extinguindo a exigência de vistos entre o Brasil e os EUA.

Pela proposta, o Brasil passaria a adotar o chamado “passaporte seguro”, que, além de ser praticamente à prova de falsificação, teria gravados eletronicamente dados biométricos sobre seu portador. A adoção do passaporte seria precedida da suspensão imediata da identificação de brasileiros e americanos. Lula reafirmou que a ordem para o fichamento dos americanos tinha sido dada à Polícia Federal em obediência a uma sentença judicial, mas que o governo tinha decidido regulamentá-la através de portaria do Executivo. A proposta de acordo para fim da exigência dos vistos de entrada – o Brasil já tem acordos internacionais semelhantes com a França e a Grã-Bretanha, entre outros – para o governo brasileiro teve como principal aspecto passar o problema para os EUA. Fontes diplomáticas acham difícil que os EUA abram suas fronteiras ao Brasil, especialmente por causa do elevado número de brasileiros imigrantes ilegais no país. Mas destacam que, agora, cabe aos EUA darem uma resposta oficial à proposta brasileira. Se não aceitarem o acordo, o Brasil fica livre para manter o sistema de identificação aos passageiros americanos sem ser acusado de retaliação.

Em uma demonstração de que o fichamento dos americanos só será suspenso se os EUA fizerem o mesmo, na quinta-feira 15, a Advocacia Geral da União (AGU) recorreu da decisão do juiz federal Julier Sebastião da Silva, apenas para manter o preceito constitucional que reserva ao Executivo comandar a política externa. O porta-voz do Palácio do Planalto, André Singer, reafirmou que a portaria do governo determinando a identificação dos americanos continua em vigor. “Reciprocidade não existe para retaliações e sim para estimular os outros países a nos tratarem bem”, afirmou Celso Amorim. O chanceler disse que a conversa entre Lula e Bush, apesar das divergências sobre os temas de Monterrey e da questão do fichamento dos viajantes internacionais, ocorreu em tom cordial, mostrando que o americano realmente tem simpatia por Lula.
“No final, Bush comentou comigo, ‘boa conversa, não foi?’ Eu concordei”, afirmou o chanceler.

Arrogância punida

Está provado: a mania de superioridade do presidente dos EUA, George Bush, vem ganhando adeptos entre os americanos. A prova é o gesto obsceno que o piloto Dale Robbin Hersh fez para as funcionárias da Polícia Federal que o identificavam logo depois de seu desembarque no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, na quarta-feira 16. “Ele pensou que estava na casa da mãe Joana”, disse o assessor especial do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, ao saber do episódio, que classificou como uma atitude “intolerável e arrogante”. O piloto comandava o vôo 907 da American Airlines, recém-chegado de Miami, na Flórida, e, depois de exibir o dedo médio às câmeras, foi preso. Seus dez colegas de tripulação, debochando dos precários métodos de identificação no Brasil, ficaram solidários ao piloto e se recusaram a fornecer suas digitais. Foram impedidos de entrar no País e embarcaram num vôo de volta ainda na quarta-feira.

Enquanto isso, Hersh tomava um chá de cadeira de quase sete horas na sala da PF no aeroporto, e de lá saiu direto para o Tribunal de Justiça Federal, onde foi prestar depoimento. Para sua sorte, o procurador da República Matheus Baraldi sugeriu que a denúncia por desacato à autoridade fosse trocada por uma multa de R$ 36 mil, ou cerca de US$ 13 mil. Pouco para a American Airlines, que sem titubear pagou a quantia, em cheque, depois de se desculpar com “o governo brasileiro, as autoridades portuárias, a Polícia Federal e quaisquer outras pessoas que acreditem terem sido desrespeitadas”. Mas, como num filme hollywoodiano de suspense, a história não acabou por aí. O susto maior para Hersh veio quando a PF disse que só devolveria seu passaporte quando o tal cheque fosse compensado. O piloto mal-educado teve de pernoitar no Brasil. Na manhã de quinta-feira 15, a companhia aérea entregou dinheiro vivo à Justiça, que deu final feliz ao filme: ordenou que a quantia fosse doada ao asilo São Vicente de Paula, de Guarulhos. O abrigo cuida de 27 idosos e já deu destino certo à dinheirama. Vai ampliar as instalações e aumentar o número de funcionários, para que possa atender mais gente.

De volta à terra de Bush, para onde viajou na quinta-feira à noite, o piloto Hersh certamente terá mais alguns minutos de fama, além dos 15 merecidos que teve no Brasil. Por lá, os principais jornais – The New York Times, The Washington Post e USA Today – repercutiram o caso, sem críticas ao fichamento de americanos determinado pela Justiça brasileira há duas semanas. A rede de tevê CNN exibiu a foto do gesto, já famosa no Brasil, e, para poupar os telespectadores da obscenidade, borrou o dedo médio de Hersh. A emissora lembrou ainda que, no Rio, mulatas recebem turistas dos EUA sambando para consolá-los depois do transtorno, mas ressalta que “nem todos parecem felizes”. Deve ser porque, nas últimas semanas, os americanos descobriram que, apesar de parecer, nem tudo por aqui acaba em samba.

Ines Garçoni