21/01/2004 - 10:00
Irmã de cidades como Sobradinho e Canudos, a fictícia Javé está com os dias contados. Para não vê-la afundar numa represa, seus habitantes resolvem inventar um passado pomposo para justificar o tombamento. Não espere, contudo, uma metáfora ingênua sobre a vitória do progresso que varre tudo
em Narradores de Javé, cartaz nacional na sexta-feira 23, segundo e bem-vindo filme de Eliane Caffé. A ameaça de desaparecimento da cidadezinha é só um pretexto para a cineasta paulistana entrelaçar as histórias dos habitantes, especialmente suas fantasiosas versões sobre a fundação do lugar.
Analfabetos, os “javélicos” escolhem Antônio Biá (José Dumont), que se autodenomina “intelectuário”, para redigir o chamado Livro da salvação. Reza a lenda que a cidade foi fundada na época da colonização por um tal Indalécio, responsável por guiar seus pares pelo sertão carregando um pesado sino. Acontece que cada descendente dá uma versão diferente do fato, o que confere graça e inteligência ao filme, resultado das pesquisas do roteirista e dramaturgo Luis Alberto de Abreu sobre o papel da oralidade no imaginário popular.
Entre os divertidos tipos locais, destacam-se os irmãos velhos e solteirões apelidados de Gêmeo (Orlando Vieira) e de O Outro (Roger Avanzi) – a mãe deles se dividia entre os idênticos Cosme e Damião. Os dois passam o tempo brigando pela herança das terras onde supostamente se encontram os restos mortais de Indalécio. As demais histórias seguem o mesmo viés. Equilibrando elementos míticos e picarescos,
Narradores de Javé
guarda raízes literárias em Guimarães Rosa e em Ariano Suassuna, escritores que têm sido fonte de um inspirado segmento do cinema nacional.