Ao querer barrar a inclusão de um estranho numa conversa, paulistanos de décadas atrás costumavam falar: “Sapo de fora não chia.” Embora em desuso, a expressão diz muito sobre o passado da capital paulista, que completa 450 anos no domingo 25. Cercada de várzeas e áreas alagadas, a São Paulo antiga exibia uma alta taxa de batráquios per capita devido à crescente extinção de seus predadores. Em noites sem lua, era comum tropeçar nas criaturas viscosas, que, vindas
dos charcos vizinhos aos rios Anhangabaú e Tamanduateí, formavam uma saltitante orquestra de coaxares. Essa São Paulo interiorana, posteriormente enterrada pela selva de concreto e asfalto, felizmente foi documentada com o aparecimento da fotografia na segunda metade do século XIX. E graças à preservação dos acervos pode agora ser apreciada em dois livros primorosos: São Paulo anos 20 – andar, vagar, perder-se (Melhoramentos, 144 págs., R$ 129), de João Luiz Musa, Ricardo Mendes e Evandro Carlos Jardim, e Cadernos de fotografia brasileira – São Paulo 450 anos (Instituto Moreira Salles, 496 págs.,
R$ 120), com textos de especialistas. O primeiro reúne 40 imagens
tiradas no centro velho de São Paulo por um fotógrafo anônimo, entre 1925 e 1935. O segundo traz mais de 450 flagrantes de 51 artistas,
como Militão Augusto de Azevedo, Guilherme Gaensly, Vincenzo Pastore, Hildergard Rosenthal, Thomaz Farkas e Cristiano Mascaro, focalizando desde o ano de 1826 até os dias de hoje.

Os negativos de São Paulo anos 20 foram encontrados por acaso nos arquivos da editora Melhoramentos, em 1989, impressos em placas de vidro de 18 x 24 cm. A conclusão de que se tratava de trabalhos de um mesmo autor veio da observação de marcas comuns nos vidros, da linguagem clássica usada em todas as imagens e do mesmo critério de exposição e revelação. “Pela ausência de selos nas placas, vê-se logo que não eram fotos de um estúdio famoso. Mas eram de um cara que sabia manipular o preto-e-branco, sabia colocar a sombra no lugar”, afirma Musa. É verdade. Os registros encantam não apenas por trazer à tona ângulos desaparecidos da cidade, entre eles as construções assobradadas do Largo da Memória, como pela beleza da luz e a gradação de cinza das imagens. Vistas desertas, a exemplo da rua Álvares Penteado, indicam que as andanças do fotógrafo aconteciam nos fins-de-semana. Devido à grande profundidade de campo, foi também possível ampliar detalhes curiosos, como as rodas de madeira do caminhão de entregas da Cervejaria Antarctica, estacionado na rua José Bonifácio.

Informação visual igualmente não falta nas páginas do belo Cadernos de fotografia brasileira, a ser lançado na quinta-feira 22, durante abertura da exposição São Paulo 450 anos – a imagem e a memória da cidade no acervo do Instituto Moreira Salles, na Galeria de Arte do Sesi. Na seção dedicada a Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), com as fotos mais antigas da cidade, pode-se conhecer aquela São Paulo das ruas de terra, registrada nas fotos do Largo do Capim, em frente à Igreja de São Francisco, feita por volta de 1862. A avenida Paulista, com todos os casarões dos barões do café ladeados de frondosas árvores, aparece numa imagem de 1902, clicada pelo suíço Guilherme Gaensly (1843-1928). Contemporâneo de Gaensly, mas dotado de uma preocupação mais social, o italiano Vincenzo Pastore (1865-1918) está representado por dez fotos de gente do povo, como a que mostra dois negros num banco de praça. A reunião das imagens publicadas nos dois livros evoca o nascer e o crescimento de uma metrópole que caminhou paralela ao progresso, mas, infelizmente, pouco respeitou seu passado.