19/11/2008 - 10:00
"Ah… deixa essa boneca faça-me o favor, deixa isso tudo e vem brincar de amor, de amor, hehehehe, de amor, hehehehehe…” – não consigo me lembrar quem cantava isso. Seria Renato e seus Blue Caps? A versão de I should have known better, dos Beatles, tocava sem parar no rádio de Naíde, que tinha um olho de vidro e contava histórias fantásticas no terraço ensolarado. Naíde passava roupa. Vivia suada. Tinha o cabelo curto e crespo e, ouso dizer, um certo orgulho do olho de vidro, porque era verde. Ela gostava de contar que o olho tinha pulado pra fora, não me perguntem o porquê, não sei nem se era verdade, mas eu imaginava uma cena sanguinolenta e bárbara. Ao fundo, sempre um iê-iê-iê. Eu gostava de ouvir Naíde falando, enquanto passava a roupa. Vez ou outra, minha avó vinha vigiar o serviço e eu lembro que me sentia incomodado cada vez que Naíde levava uma reprimenda. Vovó não admitia que empregado lhe respondesse. Elas admitiam muito pouca coisa, na verdade, as mulheres de então. Por essa época, papai andava reclamando por causa do comprimento dos cabelos, mas não levou adiante seu plano de manter as cabeças à la príncipe Danilo. O mundo pop, sem pedir licença, invadia as praias daquele lugar esquecido e nós despertávamos para a vida, ao som das baladas românticas e dos bailes à beira-mar. Silvinha, minha prima, tinha uma foto de Richard Chamberlain na porta do armário. Sonhava certamente em casar-se com o Dr. Kildare e viver uma vida de rosas, na América de cima, que exibia sua grandeza por toda parte. Os filmes de Doris Day passavam no Cine Ribeira e aprendíamos a ter medo de chineses que raptavam crianças brancas, para trabalho escravo. As moças, é claro, seriam prostituídas nos bordéis de Shangai. Bendita e santa a imaginação daquelas mulheres confinadas em seu mundo. Quanta loucura, meu Deus! Quanta fantasia! Acho que, nesse exato instante, sou um pouco uma delas, recriando um mundo imaginário, enquanto escuto a música que abriu a crônica. Maria Carmem Barbosa me mandou um vídeo com os Beatles cantando a canção para uma platéia extasiada e frenética, logo no início da carreira. Eu deveria ter imaginado, ou ter sabido melhor, na tradução literal, que a canção me traria outras formas e outras gentes, pois é essa a função da música, no fim das contas: trazer de volta a sensação de vida contida em alguns preciosos momentos. De modo que esta pequena crônica tem o tamanho exato da canção que já se encerra.
PS1. Uma vez, na Broadway, após assistir a uma apresentação de My fair lady, fiquei junto aos fãs, do lado de fora, à espera que o elenco saísse. Richard Chamberlain fazia o Prof. Higgins. Ele foi um dos últimos a sair. Os fãs gritaram, ele assinou autógrafos e, depois, desapareceu atrás da lataria reluzente. Tudo não durou mais do que cinco minutos, mas foi o bastante para eu perceber que, por trás dos olhos que sorriam, havia a nostalgia dos tempos em que vivia preso por fita adesiva no armário de Silvinha.
PS2. AS eleições americanas e a vitória de Barack Obama trazem muito mais do que um vento de esperança e crédito na espécie. Traz a certeza de que a única constância do universo é a mudança. Vamos a elas!
Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas