26/02/2003 - 10:00
Um dia. Dois. Uma semana. Um mês. E o telefone ainda não tocou para Adir Cândido, 13 anos. Mas ele é paciente. Paranaense, trouxe para São Paulo, onde está desde 10 de janeiro, gibis e um videogame para se distrair. Também se diverte com outros garotos. “Só não posso correr. Sou obediente”, afirma. Sua tranquilidade é alterada apenas quando soa o telefone. “Ele fica ansioso por saber se é para ele”, conta a mãe, Elisa Cândido, 39 anos. Ambos esperam uma mensagem que trará vida nova ao jovem: a doação de um coração. Elisa e Adir, portador de cardiomiopatia restritiva (enfermidade que causa o enrijecimento do músculo cardíaco), estão hospedados na Associação de Assistência à Criança Cardíaca e à Transplantada do Coração (ACTC), que dá suporte a famílias que partem para a capital paulista em busca do tão sonhado transplante.
A esperança de receber um telefonema como o desejado por Adir
é cultivada por muita gente no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde,
em janeiro havia 51.760 pessoas na lista de espera para transplante. Dado o tamanho do País – e, infelizmente, o grau de violência –, seria
de se esperar que o auxílio viesse rápido. De certa forma, a população está mais sensibilizada para o problema. O número de doações cresce desde 1997. De lá até o ano passado, saltamos de 3.932 para 8.031 transplantes realizados. As estatísticas mostram que o Brasil é o
segundo no mundo em doações em números absolutos, perdendo dos Estados Unidos. Proporcionalmente ao tamanho da população, fica em nono lugar. Ou seja, o brasileiro é generoso. Mas precisa fazer mais.
Na tentativa de incentivar as doações, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) fará uma campanha no Carnaval
para estimular a população a doar.
Para isso, entra em cena a escola Mocidade Independente de
Padre Miguel, uma das maiores do Rio de Janeiro, com o enredo Para sempre no seu coração – Carnaval da doação, do carnavalesco Chico Spinosa. No sambódromo, o público verá carros alegóricos simbolizando banco de órgãos, lista de espera, uma ala chamada hºepatofolia e fantasias de córnea, rins, pulmão. O abre-alas é um coração para representar a “doação do coração da Mocidade para a campanha da ABTO”, diz Spinosa. “Resolvemos passar uma mensagem importante,
além da festa”, completa.
Inusitado para a maioria dos foliões, o tema não é novidade para o diretor executivo da Mocidade, José Tenório, 57 anos. Ele fez um transplante de fígado em 2000, após 14 meses na fila de espera. “Quando recebemos a sugestão da ABTO, estranhei. Depois, todos se entusiasmaram”, assegura. Com tanto empenho por parte da escola, acredita-se que a folia trará bons resultados. “Nossa expectativa é a de que o Carnaval incremente os transplantes no Brasil. Será uma vitória”, afirma o médico José Medina Pestana, presidente da ABTO.
O transplante é algo relativamente novo. A primeira intervenção que implantou um coração num brasileiro aconteceu em 1968, pelas mãos do cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini. Duas décadas depois, médicos daqui fizeram o primeiro transplante de coração e pulmão com sucesso na América Latina. Por causa desses e outros exemplos, os especialistas consideram que, em termos de qualidade técnica, o Brasil vai muito bem. O problema está na quantidade. “Fazemos poucos transplantes. De coração, são cerca de 120
por ano. A França faz três vezes mais e sua população é três vezes menor”, observa o cirurgião José Pedro da Silva, do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo.
No entanto, de acordo com o médico Luiz Augusto Pereira, coordenador
da Central de Transplantes de São Paulo, em nenhum lugar do mundo
há doação suficiente. “Em parte, isso se explica porque a doação de coração e fígado, por exemplo, só se viabiliza se há diagnóstico de
morte encefálica”, afirma. A morte encefálica consiste na parada completa e irreversível de todas as funções neurológicas intracranianas. Suas causas mais frequentes são os derrames cerebrais e traumatismos cranianos. Quando o indivíduo morre vítima de outras causas, não diretamente ligadas ao cérebro, o coração é rapidamente afetado e deixa de oxigenar os outros órgãos, comprometendo a doação. Por isso, nessas situações só é possível aproveitar as córneas, a pele e os ossos, estruturas pouco atingidas pela falta de oxigenação – e mesmo assim há fila de espera para esses órgãos.
Mas a situação pode mudar se as experiências de Sorocaba e Ribeirão Preto (SP) se repetirem em outras regiões. Nessas cidades, a fila da córnea acabou. “As centrais de captação de órgãos fizeram uma parceria com as funerárias para serem avisadas dos óbitos. Desse modo, entram rapidamente em contato com as
famílias. Além disso, criou-se um clima de solidariedade, no qual todo mundo doa”,
conta Pereira. O médico planeja levar a
proposta à prefeitura paulistana.
Trabalhos como o de Sorocaba comprovam que a informação é elemento vital para acelerar o ritmo dos transplantes. Uma saída, na opinião do médico José Pedro, é investir em campanhas de esclarecimento. “As
pessoas precisam saber que o responsável pelo atendimento
de emergência não determina a doação. Os familiares temem que
o médico não faça de tudo para salvar a vida do parente pensando
que ele quer entregar os órgãos para um de seus pacientes. Isso
não acontece”, garante o cirurgião. De fato, a captação envolve
equipes distintas da que socorreu a vítima.
O processo que antecede o transplante é longo. O hospital informa o caso de paciente com morte cerebral (quando é possível aproveitar coração, pulmão, rins, fígado e pâncreas). Uma equipe médica vai à instituição para confirmar o diagnóstico. Para isso, são feitos dois exames clínicos por profissionais diferentes, com intervalo de seis horas entre um e outro. Constatada a morte encefálica, a família é abordada por uma comissão. Se concordar, o responsável assina os documentos de autorização. Em seguida, a Central de Transplantes é avisada da doação e das condições dos órgãos. Nessa etapa, a central puxa no computador a lista de receptores, levando em conta o tipo sanguíneo, o tempo de espera e a gravidade do caso. Feita a divisão, os hospitais que farão a cirurgia enviam equipes para buscar o órgão que lhes coube. Para a família do doador o processo exige altruísmo. “Não é fácil. Burocracias ligadas à morte são um horror. Tive de ir às quatro da manhã para assinar papéis no Instituto Médico Legal, depois de ter virado a noite anterior”, lembra Kuka Fromer, irmã do músico Marcelo Fromer, dos Titãs, falecido em 13 de junho de 2001. Por decisão da família, foram doados todos os órgãos, exceto a pele.
A família Fromer é um exemplo de gente consciente da importância de doar. Outro caso é de Deusvenir Souza, 34 anos, de Goiás. O primeiro filho que teve nasceu com cardiomiopatia dilatada (caracterizada pelo coração aumentado) e morreu ainda pequeno. Na ocasião, doou as córneas da criança. O segundo filho, Diego, apresentou a mesma doença, mas se tratou com remédios até os cinco anos. Nessa época, entrou na fila de transplante e foi apoiado pela ACTC (www.actc.org.br), em São Paulo. “O coração apareceu rápido, mas a família ainda não havia autorizado. Eu me ajoelhei e rezei pedindo que essas pessoas se conscientizassem. Deu certo”, recorda-se. Diego está hoje com 12 anos. É um vitorioso. Volta sempre para São Paulo para exames de rotina.
Ser contemplado rapidamente por uma doação não é comum. Medina, da ABTO, estima que metade das pessoas que estão na lista morre esperando a solidariedade alheia. Um dos entraves à doação é o desconhecimento da família quanto à vontade do potencial doador. Na dúvida se havia esse desejo, muitos optam por não permitir a retirada dos órgãos. E hoje esse procedimento só pode ser feito com autorização explícita da família. A lei 9434/97, que estabelecia a doação presumida – quem não colocava um aviso na cédula de identidade de não doador se transformava em doador – foi revogada em 2001. Isso porque, em vez de ajudar, a lei só atrapalhou. Muita gente acreditou no absurdo mito de que seria mal atendida em casos de emergência só para ter seus órgãos retirados e carimbou o “não doador”.
Outra razão para o problema é a baixa notificação de possíveis doações. “Hoje, apenas um em cada 12 potenciais doadores é notificado”, diz Medina. Segundo ele, isso acontece porque os hospitais estão pouco envolvidos. Além disso, outro complicador é a burocracia que pode emperrar o processo mesmo depois da doação autorizada. O editor Geraldo Jordão, dono da editora Sextante, do Rio, viveu um calvário em busca de um fígado. No ano passado, conseguiu ser transplantado graças a um esquema policial. No começo de 2002, estava no primeiro lugar da fila do Rio. “No dia 31 de março, fui avisado que meu fígado tinha chegado”, lembra. Mas os responsáveis pelo hospital onde estava a doadora não liberaram a retirada do órgão por não saber quem pagaria pelo procedimento. Enquanto isso era discutido, o editor estava em outro hospital já preparado para o transplante, sem saber de nada. Mediante o impasse e sem tempo a perder, amigos e familiares chamaram a polícia. E foi sob intervenção policial que o fígado foi retirado.
Para evitar dramas como esse, uma alternativa que ganha importância é o transplante intervivos. É uma opção para quem precisa de um fígado, rim ou medula óssea. A técnica para fígado, inclusive, foi criada no Brasil, em 1989. “Tiramos 60% do órgão de um doador vivo e o transplantamos. Os dois fígados se regeneram em dois meses”, esclarece Sérgio Mies, do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. “É a melhor opção para salvar vidas”, diz Álvaro Pacheco e Silva Filho, da Universidade Federal de São Paulo.
Atualmente, calcula-se que cerca de 70% dos transplantes de rim são intervivos. Um dos beneficiados pela técnica foi o menino Gustavo de Souza, 11 anos, do Rio. Ele nasceu com um problema renal que causava obstrução no canal da urina. Por esse motivo, perdeu o rim esquerdo. A solução veio do amor da mãe, a empregada doméstica Kátia Sampaio, 36 anos. Há cinco anos, ela doou um dos rins ao filho. Mãe e filho vão desfilar pela Mocidade. “Estaremos no carro ‘E a vida continua’. Não podia ser mais adequado. Gustavo é o futuro. É a vida que toma novo caminho”, emociona-se Kátia.
Para o jogador Narciso dos Santos, zagueiro do Santos, a intervenção intervivos também foi bem-sucedida. Ele descobriu ser portador de leucemia (câncer das células sanguíneas) em janeiro de 2000. Em maio, recebeu o transplante de medula óssea da irmã Milda. “Minha recuperação foi muito boa porque sou atleta”, conta. Narciso, que perdeu muita massa muscular e chegou a emagrecer quase 20 quilos, voltou a treinar em fevereiro de 2002. Em quatro meses, espera ter condições de entrar em campo. O jogador costuma dizer que diante de um obstáculo é preciso ter força para superá-lo. Pode servir de alento a quem aguarda um transplante. É verdade, porém, que um gesto de solidariedade faz grande diferença. Afinal, ninguém quer ficar na fila esperando um dia. Dois. Uma semana. Um mês…
ERRO GRAVE
Nos Estados Unidos, o drama de uma menina de 17 anos comoveu o país. Por um erro, a mexicana Jesica Santillan recebeu um coração e um pulmão de tipos sanguíneos diferentes do seu num transplante realizado no dia 7. Imediatamente seu organismo rejeitou os órgãos. Iniciou-se então uma busca desesperada por novos órgãos, desta vez compatíveis. Eles só chegaram na quinta-feira 20, quando foram implantados. A menina é portadora de uma deformidade cardíaca que prejudica a oxigenação do sangue. De acordo com os médicos que realizaram o segundo transplante, não era possível prever quando Jesica poderia se recuperar. Até a noite da quinta-feira, ela continuava em estado crítico.