02/02/2005 - 10:00
A antropóloga Mirian Goldenberg, 48 anos, sofreu quando criança. Nascida em Santos, no litoral de São Paulo, ela é judia, filha de mãe polonesa e pai romeno. Os dois só falavam o idioma ídiche em casa. Além disso, seu nome destoava dos apresentados pelas colegas de colégio. “Tudo o que eu queria era ser igual a todo mundo”, lembra. Talvez essa origem ajude a explicar sua obsessão por comportamentos fora do padrão, tema que estuda há mais de 20 anos. Após se debruçar sobre os anseios libertários femininos no livro Leila Diniz e analisar a infidelidade em A outra, ela lançou recentemente De perto ninguém é normal (Editora Record, 190 págs., R$ 28,90), espécie de inventário sobre os novos tipos de relacionamento entre casais, as tendências dos mais jovens e as preferências em geral.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mirian fez uma extensa pesquisa sobre o tema. Analisou 1.279 questionários, respondidos por 835 mulheres e 444 homens de nível universitário, de 17 a 50 anos. Constatou que as mulheres hoje traem mais que antigamente – embora a fidelidade continue valorizada – e que as meninas são as maiores vítimas de um paradoxo cultural brasileiro: enquanto a sociedade ainda dá importância à virgindade, elas se sentem diminuídas perante as amigas se continuarem virgens depois dos 16 anos. Conclui que os homens também estão se tornando vítimas do machismo brasileiro, ao encontrar casos de jovens tomando pílulas contra a impotência para garantir a satisfação das namoradas, homens maduros que trocam de parceiras só para afirmar a virilidade e pais frustrados porque dependem do controle feminino para se relacionar com os filhos. Foi baseada nessas contradições que ela resolveu dar o título de seu novo livro. Afinal, ninguém pode ser normal num cenário tão cheio de conceitos e princípios extremos. “Os modelos de comportamento da cultura brasileira são ambíguos, por isso ninguém se sente normal”, esclarece. Nesta entrevista a ISTOÉ, Mirian fala sobre os resultados de seu trabalho.
Os casamentos serão cada vez mais igualitários, com mulheres trabalhando e participando mais das decisões. As pessoas vão optar por não ter filhos – ou ter no máximo um – e também pelo não-casamento. Tudo isso deixará de ser considerado um fracasso. Será tido como uma opção, como já acontece no Primeiro Mundo. Na Alemanha, 25% das mulheres escolhem não casar. Acham que marido atrapalha a mobilidade profissional, a possibilidade de viajar e também dentro de casa, porque coopera pouco. Muitas querem até ter filho, mas não marido. Os espaços tornam-se cada vez mais respeitados e claros, inclusive os físicos, com áreas distintas para cada um dentro de uma mesma casa. Haverá maior flexibilidade e a invenção será mais valorizada do que a padronização.
núcleo familiar de pai, mãe e filhos para sempre já não existe na prática, embora muitos ainda sonhem com esse modelo. Encontro muitos casos de pessoas que se casam, se separam e voltam a se casar novamente. Muitos
querem a relação em casas separadas e não conseguem por questões finan-
ceiras, outros por medo ou por preconceito. Na verdade, a sociedade brasileira até aceita o casal em uma só casa, com banheiro, quarto e telefones separados. Também há muitas mães sozinhas criando seus filhos e pais querendo esse
papel, uma grande novidade. Eles já não se restringem ao trabalho, à política e
ao futebol. Isso pode gerar um atrito, porque as mulheres se acostumaram a
mandar no espaço doméstico.
Uma das coisas que mais me chamaram a atenção na pesquisa é que os casais praticamente não falam de sexo, nem como problema nem como justificativa para uma relação ser boa. Homens e mulheres se preocupam muito mais com a amizade, o companheirismo, a compreensão do que com a cama. De fora para dentro há um modelo de que o bom casamento deve incluir sexo de três a quatro vezes por semana. Isso faz com que muitos casais, ou até a maioria, se sintam fora dos padrões e passem a considerar um problema aquilo que não é no caso deles.
É uma idealização de buscar no outro a plenitude afetiva, o só poder ser feliz com a alma gêmea. É como se os relacionamentos se parecessem com os filmes e as novelas. Encontro muito isso nas mulheres, de todas as idades, e não tanto nos homens. As meninas idealizam muito. Não é verdade que ficam, beijam ou transam com qualquer um. Se elas fazem isso, é como resposta ao que os meninos esperam delas e até uma maneira de conquistá-los. Eles, por sua vez, até se apaixonam, mas com menos ansiedade.
Hoje ela é negociada. Se o homem trai, a mulher também pode, e, se a mulher não trai, o homem não pode. A grande novidade é que as mulheres traem mais do que no passado, ou pelo menos dizem que traem. Na minha pesquisa, 60% dos homens e 47% das mulheres afirmam que já traíram. O mais interessante são os motivos. O homem usa expressões como “pintou”, “é o instinto”, “é a natureza”, como se fosse uma predisposição genética. As mulheres traem por vingança, por não se sentirem mais desejadas. Culpam os homens e não se assumem como sujeitos da traição, continuando sob a dominação masculina.
Elas fazem enormes listas precedidas pela palavra falta: de romance, carinho, conversa, atenção, cumplicidade, tempo, etc. O homem, por outro lado, responde curto e grosso: falta de compreensão. É interessante como em um mercado afetivo, social e demograficamente desfavorável para a mulher, é ela
quem mais exige e cobra de uma relação. Enquanto o que o homem mais
quer é paz e sossego
É, mas também virou um estigma. Para famílias conservadoras, a virgindade é valorizada, mas na maior parte da juventude é estigmatizada. As meninas têm vergonha de dizer que são virgens. Tanto meninos quanto meninas estão perdendo a virgindade por volta dos 16 anos, mais cedo do que a minha geração, que perdia depois dos 18. Por outro lado, as jovens não podem ter muitos parceiros, com medo de serem tachadas de “galinhas”. Uma entrevistada de 40 anos foi quem teve mais homens: 27. Os rapazes têm muito mais. Mas 30% deles dão informações vagas, “mais de 100”, “menos do que gostaria”. Eles têm medo de ter menos parceiras do que os amigos e estão sempre competindo.
Tenho estudado essa categoria de novo homem, que já teve muitos nomes: homem gay, sensível, feminino. Cada vez se inventa um nome, mas é uma sofisticação de algo que já vem acontecendo. O homem sempre foi vaidoso, mas não podia manifestar esse sentimento em relação às roupas e ao corpo. A vaidade masculina se ampliou para territórios antes proibidos. Ao mesmo tempo é um modismo, que elege homens muito bonitos, ricos, famosos e bem-sucedidos, para os demais acreditarem que é um modelo de masculinidade a ser seguido. No entanto, na minha opinião, há uma crise no modelo masculino, que antes era forte, poderoso. Agora até jogador de futebol vira modelo, como o inglês David Beckham.
Só para os homens. É interessante quando peço a eles para se definirem para uma possível parceira. Começam dizendo que são altos, fortes e, em seguida, bem dotados. Eles acreditam nesse modelo de masculinidade que ainda vigora, baseado em músculos e vigor físico. Mas isso tem causado até mortes, como os meninos que morreram tomando anabolizante bovino para ficarem mais musculosos. O tamanho do pênis é uma obsessão, tanto para os meninos quanto para os homens mais velhos.
É bem mais difícil perceber onde está o sofrimento masculino, porque em uma sociedade machista como a nossa o homem não pode falar de suas fraquezas e, às vezes, nem pensar sobre elas. Mas muitas respostas da minha pesquisa revelam como a obrigação de ser viril, potente, forte, e ter como modelo de masculinidade a relação com várias parceiras, causa muita dor. Encontro jovens tomando remédios contra a impotência por medo de falhar com suas namoradas, homens trocando de mulheres simplesmente porque querem voltar a afirmar sua potência e pais que desejam se dedicar mais aos filhos e não conseguem. As mães têm o controle do tempo que eles podem estar com os filhos.
As novelas são excelentes instrumentos para se pensar a realidade brasileira. Ajudam a tornar visíveis comportamentos ocultos e a mostrar que esses exemplos podem acontecer em qualquer família. Nos últimos dez anos, esse é o terceiro casal de lésbicas em novela. O primeiro morreu. O segundo pôde existir, mas com muitos conflitos. Esse tem uma tolerância muito maior pela família de
uma delas. Mas a sociedade brasileira ainda é muito intolerante com o homossexualismo em geral.
Constatei, e acho que continua assim, que as mulheres ocupavam posições secundárias, de apoio, dentro dos partidos e organizações de esquerda. É a mulher que serve o cafezinho, organiza a mesa, é a dona-de-casa. Elas praticamente só eram a fachada dos militantes. Eles eram famosos, importantes e corajosos. Raríssimas as que fugiram a esse papel, como Olga Benário, companheira de Luiz Carlos Prestes, e Iara Iavelberg, de Carlos Lamarca, que não aceitava uma posição invisível e assexuada. A Iara foi acusada, dentro e fora do partido, de ser promíscua, de ter roubado Lamarca de sua mulher e de usar roupas muito sexy.
