26/08/2009 - 10:00
Desde que começou a pandemia de gripe suína, em abril deste ano, o número de horas de trabalho diárias da infectologista Nancy Bellei, 47 anos, subiu de nove para 14. A maior parte desse tempo é dedicada ao estudo do vírus H1N1 – agente responsável pela gripe suína – e ao atendimento dos pacientes com suspeita da doença internados no hospital da Universidade Federal de São Paulo. Preocupada com a qualidade da assistência, ela diz que muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Nancy tem dezenas de artigos publicados em revistas científicas internacionais e é pós-doutorada em vírus Influenza, o causador das gripes. Nesta entrevista concedida à ISTOÉ, a médica critica os rumos do controle da epidemia no Brasil. Até a terça-feira 18, o País registrava 368 mortes por H1N1 e tinha 3.087 casos confirmados.
Esse índice se refere ao percentual de mortes entre pessoas internadas. Até agora, foram hospitalizadas cerca de seis mil pessoas no Brasil com sintomas graves e suspeita de gripe.
Dessas, cerca de 1,5 mil tinham testes confirmados. Entre essas últimas, em torno de 12% morreram. Isso é um absurdo. É um índice altíssimo. Uma taxa baixa seria algo em torno de 2% para esses pacientes, já que, como dizem, é uma doença que raramente mata. Se fosse mesmo assim, não deveria ser de 12%.
Não. As pessoas não estão em pânico. Pânico é quando o indivíduo dá o primeiro espirro e corre para o pronto-socorro. Mas o que estamos vendo no serviço público é as pessoas chegarem entre 48 e 72 horas depois de os sintomas aparecerem, quando pode ser tarde demais.
E algumas vêm após terem passado por outros serviços. Eu mesma atendo pacientes com sintomas intensos que passaram por outros médicos, mas não tiveram indicação do remédio.
No Brasil, faltou e ainda falta treinamento para os profissionais que atendem nos postos e prontosocorros para identificar os casos graves e que podem se complicar.
Não existem no Brasil leitos em unidades de terapia intensiva para tratar todos os pacientes que precisam de cuidados. Há grande diferença na qualidade do atendimento prestado em uma UTI de um bom hospital privado e um leito desse tipo em pequenas cidades, por exemplo.
É claro que uma situação de gripe é dinâmica e exige que sejam feitas adaptações nos protocolos de atendimento. Mas as mudanças constantes nas regras para distribuição do remédio causam confusão. Tivemos pacientes com complicações porque não receberam o antiviral.
Isso aconteceu inclusive com grupos de risco, como gestantes e hipertensos, porque as orientações anteriores não previam o tratamento de todos os casos que se enquadrassem nesta categoria. Isso mudou há cerca de três semanas.
Foi necessário corrigir o fluxo da intervenção. Toda vez que você tem de corrigir é porque estava fazendo errado. Muitas vezes, em uma pandemia, nos deparamos com intervenções que não foram as mais adequadas. Em todos os países isso vai acontecer.
Essa é uma das questões mais equivocadas nessa história. A resistência tem duas formas. Uma delas independe do uso de antivirais. O vírus Influenza muda e de uma hora para outra pode se tornar reresistente em países onde ninguém usou o remédio. O segundo mecanismo é a seleção. Quando você toma a droga, mata os vírus sensíveis, mas, se tiver um resistente e isso é uma loteria , ele pode se multiplicar e ser transmitido. O fato é que o vírus resistente, que já apareceu em vários países, pode chegar aqui do mesmo jeito. Por isso, não usar para controlar a resistência é um engano. Devemos, sim, utilizar com critério e monitorar a resistência.
Sim. Para aqueles que o médico avaliar que o remédio trará benefício. Mas hoje só é dado para os grupos de risco e pessoas que apresentam falta de ar, febre e tosse. Existe também uma orientação que dá ao médico a liberdade de receitar se achar conveniente. Há uma relação custobenefício importante em tratar as pessoas com sintomas porque, dessa maneira, evita-se que os casos evoluam para as formas graves da doença.
Houve uma ação conjunta da Associação Médica Brasileira, da Associação Paulista de Medicina e da Sociedade Brasileira de Infectologia para ampliar as regras de prescrição do remédio.
Com certeza. Muitas vidas poderiam ter sido salvas se isso já estivesse em prática. No início, quando tratávamos todo caso suspeito, não tivemos nenhuma morte. Isso é uma questão científica e médica.
Isso é uma questão de gestão. O que não pode é estabelecer um fluxo de treinamento médico e de tratamento de uma situação clínica porque não há remédio. Também não posso deixar de colocar um doente na UTI e dizer que essa é a conduta correta porque não tenho leitos
Sim. Mas exatamente por estarmos diante de recursos limitados é que precisamos saber quem são os mais atingidos e como gerenciar essa situação. Porém, os dados são defasados. Outra coisa importante é analisar o impacto da doença na vida de quem esteve internado. Metade dos doentes fica uma a duas semanas no hospital, na terapia intensiva, tomando muitos remédios. Há mães que tiveram bebês prematuros. Tudo isso não tem impacto importante?
Ela é diferente. É uma doença potencialmente grave para uma pequena proporção de indivíduos e que pode ter um caráter muito mais sério se não há recursos de saúde para esses pacientes.
Não. Na última semana, a Organização Mundial de Saúde divulgou um parecer dizendo que é para continuar prescrevendo o remédio para crianças. Podem haver efeitos colaterais, como náuseas e pesadelos, mas o risco de complicações é alto nesta faixa etária. Por isso, o benefício do remédio é muito maior do que o prejuízo.
Em tese, é possível que entre outubro e novembro diminuam os casos na região Sudeste, dependendo da temperatura. Nesta semana, percebemos uma redução nos atendimentos feitos na Unifesp, mas não dá para saber o que está acontecendo. É necessário observar mais duas semanas para identificarmos se há uma diminuição real de infectados ou se a queda ocorreu por causa da mudança na prescrição do remédio. As regiões Norte e Nordeste têm outro comportamento para o Influenza. Lá os casos são mais numerosos em janeiro e fevereiro. Não sabemos se a taxa de ataque será maior nesses meses.
Eles estão considerando que o vírus pode ficar mais agressivo. É possível pensar isso baseado em pandemias anteriores.
Em qualquer onda, a estimativa é que essa pandemia atinja até 30% da população, em um cenário mais pessimista, e 10% em uma situação mais favorável. Mas é preciso fazer uma estimativa real de quantas pessoas estão sendo atendidas nos hospitais para saber o que fazer no ano que vem e quantas doses de medicamento e vacinas precisaremos ter.
É preciso avaliar o tempo de ocorrência entre um caso e outro. Devemos observar entre dois e três dias para ver se não aparecem outros. Se não ocorrerem, saberemos que são casos esporádicos, porque a criança não se contamina só na escola. Mas se houver mais, em seguida, pode ser um surto local. Nos países do Hemisfério Norte, tem-se procurado tomar medidas como cancelar aulas numa sala por uma semana, por exemplo.
Se a criança tiver mal-estar ou dor de cabeça, mesmo sem febre, é melhor deixá-la em casa até o dia seguinte para ver como os sintomas evoluem. Se estiver febril, com temperatura por volta de 37,3 graus, também não deve ir para a escola. Apresentando febre e sintomas respiratórios, como tosse, é bom procurar o médico.