Os candidatos que concorrem à candidatura do Partido Democrata às eleições presidenciais deste ano formam aquilo que no Brasil se chama de muvuca: trata-se de um aglomerado de gente se acotovelando e cometendo toda sorte de atos deseducados em busca da indicação que os jogará numa parada política das mais ferozes: enfrentar o presidente George W. Bush nas urnas, em novembro deste ano. A situação, no atual estágio, é semelhante a uma briga de bar, onde a pancadaria come solta e o último que sobrar em pé ganhará o direito de encarar, digamos, o pugilista campeão Popó. São nove pessoas no melê: misturados nas categorias de pesos pesados e mosca. Nesta última pesagem, por exemplo, está a ex-senadora (de um único mandato: 1992-98) Carol Moseley Braun. Negra e mulher, suas chances de ganhar são as mesmas de um bêbado sair vivo de um tiroteio no mencionado boteco. No centro do ringue está o ex-governador do Estado de Vermont, Howard Dean, em quem as bancas de apostas oficiais partidárias não apostavam um centavo furado. Milhões de outras pessoas o fizeram, dando a Dean não apenas o mais recheado cofre de campanha entre os concorrentes, mas também a liderança nas pesquisas de intenções de voto. O establishment democrata investiu furiosamente contra o arrivista vermontino. O que só serviu para reforçar o carisma radical do primeiro a desancar Bush nas questões da guerra contra o Iraque e nas batalhas do front doméstico. Dean é o homem a ser batido nas primárias.

A cada quatro anos, o Estado de Iowa sai da condição de paroxismo caipira, no imaginário americano, para uma desproporcional importância nos destinos políticos do país. É naquele bucolismo agrário no meio dos Estados Unidos que será realizado na segunda-feira 19 o caucus (literalmente “comitê político”) onde se fazem as primeiras votações a candidatos a candidatos do partido. Os investimentos daqueles que se inscreveram para o escrutínio do caucus procuram o mesmo que o Estado: reconhecimento de nome. Aqueles que saírem na frente, digamos, entre os três primeiros lugares nesta preliminar, vão chegar a New Hampshire, no fim do mês, com muito mais músculos do que os outros. E quem arrebatar mais votos nesta próxima parada terá quase garantido um lugar entre os finalistas.

Dos nove candidatos, o deputado Richard Gephardt, líder da minoria na Câmara e um dos capitães da derrota democrata nas últimas eleições legislativas, é quem tem investido mais tempo e atenção a Iowa. Repete a fórmula que ele mesmo usou em 1988, quando levou os votos locais. Pode repetir também a história: leva o caucus e perde feio em todas as outras instâncias. “Dick já gastou 40% de seu tempo e dinheiro em Iowa. Ele vai morrer sem sequer ter avistado a praia”, disse a ISTOÉ Jay Carson, porta-voz da campanha de Dean, que está na frente.

O ex-governador de Vermont não tem problemas de bolso. Pode ser que não se eleja presidente dos Estados Unidos, mas pelo menos conseguirá um rodapé na história política do país por ter inventado o chamado “blog eleitoral”. Para aqueles pouco familiarizados com as magias do cyber-espaço, “blog” é uma ferramenta editorial da rede globalizada de computadores. O que Howard Dean conseguiu mesmo foi atrair uma vasta multidão de geninhos da computação, que bolaram sites na web que, além de se comunicarem entre si, ainda auxiliam qualquer pessoa a fazer seu próprio nicho para ajuda na campanha e coleta direta de contribuições monetárias. Mandaram para os cofres do candidato algo em torno de US$ 70 milhões. Um recorde de bilheteria entre os concorrentes. Esse mesmo exército de adeptos do ex-governador, um movimento de base espontâneo, ganhou vasto território exatamente porque Dean desde o início foi um ferrenho opositor à guerra do Iraque. O establishment democrata votou apoiando a política de Bush. Tanto o senador John Edwards, considerado forte concorrente antes de a briga começar e hoje não mais sendo cogitado nem para uma possível vice-presidência, passando por Dick Gephardt, o senador Joe Lieberman – que perdeu o apoio de seu ex-companheiro de chapa Al Gore – quanto o senador John Kerry, um veterano do Vietnã, com pinta de galã, que muitos consideravam o mais elegível dos democratas em 2004, estavam tão defasados com os sentimentos do eleitorado do partido que não perceberam o viés do ódio generalizado a Bush como principal cabo eleitoral.

É claro que, em meio ao grupo dos nove, existem vários elementos que foram contra a guerra desde o início. Carol Braun e o impagável pastor nova-iorquino Al Sharpton sempre estiveram nas trincheiras da oposição à invasão e ocupação iraquianas. O deputado Dennis Kucinich – grande favorito da esquerda intelectualizada, mas que por isso mesmo não se elegerá sequer a síndico de prédio em Washington – é outro exemplo. E, finalmente, o general Wesley Clark – que entrou depois de o melê ter se formado – também se declarou contrário à política do Pentágono e está encostando em Dean.

A solução dos candidatos do establishment foi cair para a direita e acusar Dean de esquerdista populista inelegível. Ele foi comparado ao ex-candidato democrata à Presidência George McGovern, que depois de ter tomado de assalto a convenção democrata de 1972 com um discurso de esquerda perdeu de lavada para o republicano Richard Nixon. Nem todos concordam, claro, com esta comparação. “A trajetória de Howard Dean não tem nada a ver com o que aconteceu nos anos 70”, disse a ISTOÉ ninguém menos que George McGovern. “A campanha do governador Dean está mais bem estruturada do que foi a minha, tem mais dinheiro em caixa e conta com um movimento de base mais bem alicerçado do que aquele que me acompanhou. Acho que a grande diferença entre ele e eu é que seus correligionários irão às urnas em novembro de 2004 e os meus não foram em 1972”, disse McGovern.

De todo modo, Dean terá de enfrentar um adversário que tem todo o sul e o meio-oeste americano no colete e mais US$ 130,8 milhões de dólares no bolso da calça (esperam-se US$ 170 milhões até novembro). E mantém o terrorismo radical islâmico e a insurgência no Iraque como grandes cabos eleitorais republicanos. Por enquanto, as últimas pesquisas mostram que, se as eleições fossem agora, Bush teria 51% contra 46% de votos para Dean. Mas, até novembro, existe muito tempo.