28/11/2001 - 10:00
Poucas vezes na história, as pessoas desejaram tanto se abrirem para o outro, arrancar as máscaras, mostrar os recônditos do corpo e da alma. A atitude é encarada com naturalidade desconcertante por quem quer ver e ser visto. Esse despojamento – motivado por exibicionismo, carência, narcisismo, marketing ou tudo isso junto – fez ruir um dos últimos bastiões da sociedade burguesa: a privacidade como valor moral. Expor a intimidade não é mais sinônimo de constrangimento. Até os diários, que sempre serviram para lacrar segredos, vexames e vergonhas foram reinventados na internet e servem de palco para revelar detalhes banais, engraçados ou mórbidos da experiência pessoal. A analista de sistemas paulistana Ivanise Maravalhia Gomes, 29 anos, transformou o mundo em seu confidente. As torcidas do Corinthians e do Flamengo, inteiras, já sabem que ela foi demitida e sofreu uma decepção amorosa. Suas aventuras, angústias, alegrias, reflexões e fotos, muitas fotos, disputam a atenção de milhares de internautas com outras 2.800 publicações do gênero, que ganharam o nome de blog – de weblog, que significa arquivo da rede. A moda pegou porque os blogs, que também dão a cada um a oportunidade de exercer sua verve de escritor e poeta, são mais simples de montar do que um site. Esses diários virtuais vêm se juntar a uma festa de intimidade coletiva, partilhada por famosos e anônimos em programas de tevê, revistas, e a uma profusão de sites alimentados por imagens de vídeo captadas por câmeras indiscretas que garantem os 15 megabytes de fama.
A busca de notoriedade rápida é mais um pretexto para mostrar o corpo. Na quinta-feira 22, a modelo Denise Mara Cardoso, 20 anos e 1,73 m de altura, literalmente parou o trânsito da zona sul de São Paulo. Para criticar a longa espera e a falta de organização do concurso de modelos promovido pela agência Mega Model, a bela fez um strip-tease em plena avenida. Arrancou a blusa diante dos olhares atônitos dos pedestres e dos flashes dos fotógrafos. “Estou aqui para provar que tenho corpo para isso”, justificou-se a moça, que não se classificou. Em compensação, apareceu em todos os jornais e passou a sexta-feira nos estúdios dando entrevistas para a tevê. As 260 mil candidatas a modelo almejavam um contrato de quatro anos e prêmio de US$ 100 mil.
Em exposição permanente há quase dois anos, a modelo Janaína Machado, 24 anos, virou estrela da internet e recebe a visita de cinco mil dedicados voyeurs. Ela divide o apartamento em São Paulo com o cachorro Piggy e duas câmeras, uma na sala e outra no quarto, mas tampa o buraco da fechadura cibernética nos momentos íntimos. “De vez em quando dou uma canja e troco de roupa na frente das câmeras. Elas fazem parte do meu cotidiano e acho incrível que tanta gente acompanhe meu dia-a-dia, que é absolutamente normal”, gaba-se. Nem sempre a vida pública e a privada estiveram em esferas separadas. “O conceito de privacidade foi criado pela burguesia para assegurar o núcleo familiar, o poder e a riqueza”, afirma o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Marcus Vinícius de Oliveira. Era no conforto do lar que o ser humano encontrava reconhecimento, identificação e proteção. A desestruturação familiar, a liberação sexual e o consumismo capitalista transformaram a família num trampolim para os indivíduos brilharem na selva, onde todos são iguais, mas únicos e querem atenção.
É curioso que justamente na França – berço da revolução igualitária e libertária que colocou os burgueses no poder e disseminou a cultura da discrição e do resguardo – um dos maiores fenômenos de vendagem nas livrarias seja a autobiografia erótica A vida sexual de Catherine M. Nela, a crítica de arte Catherine Millet, 53 anos, revela em detalhes picantes as relações sexuais que manteve com dezenas de homens, muitas delas com o conhecimento do marido, o escritor Jacques Henric. A obra vendeu 260 mil exemplares, foi traduzida para 20 idiomas, e a edição brasileira deverá ser lançada na próxima semana pela editora Ediouro. Henric, o marido, aproveitou a iniciativa para lançar um álbum com fotos da parceira – quase sempre nua – em lugares públicos.
Não é por coincidência que a maior parte das intimidades escancaradas esteja relacionada ao mesmo tema: sexo. “É o primeiro enigma com que o ser humano se depara. As perguntas básicas que uma criança tenta responder são de onde vêm os bebês, qual o meu sexo e qual o do outro”, explica o psicólogo Marcus Oliveira. Desnudar-se, segundo ele, não seria condenável. “Se o sujeito dá vazão a seu impulso de aparecer e sente prazer com isso, é bom sinal. Para os jovens, pode significar a busca de novas linguagens. O problema é quando a indústria cultural se apropria dessas manifestações, banalizando-as e empobrecendo os laços sociais”, observa.
Os dois programas seguem a trilha de sucesso dos reality shows internacionais – como o holandês Big Brother e o americano Survivor, em que um grupo de mortais comuns isolado do resto da civilização permanece sob a vigilância constante de dezenas de câmeras. Casa dos artistas conseguiu o feito histórico de roubar em 13 pontos a audiência até então imbatível do Fantástico, no ar há 28 anos. O que leva o telespectador a grudar os olhos na telinha para bisbilhotar a privacidade alheia é uma mistura de admiração e identidade. “O público necessita de figuras mágicas e míticas para situá-las entre o homem e a divindade. Ao mesmo tempo, tem certeza de que não é inferior porque vê que os artistas dormem, comem, brigam, são mesquinhos e vão ao banheiro”, analisa o psiquiatra Miguel Chalub. “Comecei a ser querida quando as pessoas puderam me ver sem peneiras”, diz a apresentadora Monique Evans, 45 anos, que pilota a atração Noite afora, da RedeTV!. Diante das câmeras, ela confessa indiscrições: aprendeu a se masturbar depois dos 30 e, pasmem, não é boa de cama.
Fantasia – Fora do mundo das lentes, a vigilância onipresente, imaginada pelo escritor George Orwell no livro 1984 e batizada de Big Brother, ou Grande Irmão, deixa de ser ficção. Em lojas, bancos, shoppings, prédios e até nas praias há câmeras invisíveis espreitando tudo e a todos. As 22 câmeras instaladas na ponte Rio–Niterói já registraram imagens incendiárias de casais que simulavam uma avaria no carro como pretexto para realizar a fantasia de se expor em via pública. Numa dessas ocasiões, um homem faz sexo com a mulher apoiada na mureta, sob o risco de cair nas águas poluídas da Baía de Guanabara, enquanto centenas de carros passam a poucos metros de distância. Os técnicos de segurança da ponte dizem que o número de ocorrências desse tipo diminuiu depois que mais gente soube da existência das câmeras. Para não ser pego de surpresa, a alternativa é ficar sempre de olhos bem abertos.
Colaboraram: Camilo Vanucchi (SP) e Celina Côrtes (RJ)