24/12/2003 - 10:00
É sabido que as tiranias vicejam nas entranhas do medo. A República do Iraque, nascida em 1958 com a sangrenta derrubada do rei Faiçal II por um golpe militar, fez da repressão sua raison d’être e tornou os iraquianos um povo aterrorizado. Saddam Hussein foi apenas a síntese dessa república do medo. Ele entrou em cena um ano depois da queda da monarquia, quando o Iraque estava convulsionado por violentas disputas de facções políticas. O partido nacionalista árabe Baath, que apoiara o golpe, tramava o assassinato do primeiro-ministro, general Abdul Qarim Qassim. Saddam Hussein al-Tikriti, então com 22 anos, daria cobertura aos quatro homens que deveriam executar Qassim. Ele era tido como corajoso; já havia assassinado um cunhado comunista. Mas a emboscada fracassou e Saddam foi ferido na perna. Reza a lenda que ele arrancou a bala
com uma gilete e, disfarçado de beduíno, fugiu numa mula para o
norte, cavalgando durante quatro noites. Depois, nadou pelo rio
Tigre e fugiu para a Síria.
A necessidade de criar uma mitologia pessoal grandiloquente permeia toda a vida política do ex-ditador, que chegava a se comparar a Nabucodonosor II, rei da Babilônia (605 a.C.–562 a.C.), o brilhante estrategista que reconstruiu o império. De família camponesa sunita pobre, Saddam nasceu em 28 de abril de 1937 em Ouija, na província de Tikrit. O local ficou famoso por ser o berço de outro mito mesopotâmico que o ex-dirigente adorava evocar, Saladino, o herói do Islã, de
origem curda que, no século XII, derrotou os cruzados. O pai de
Saddam, Hussein al-Majid, morreu antes de ele nascer. Saddam foi
criado pela mãe, Subha al-Tulfah, que depois se casou com Ibrahim Hassam, um homem rude e ignorante. O ex-ditador relembraria com amargura a forma como ele era despertado pelo padrasto: “Levante,
seu filho da puta, vá cuidar das ovelhas!” Quando tinha dez anos, Saddam fugiu e foi viver em Bagdá com um tio, Khairallah Tulfah,
expulso do Exército por apoiar um golpe pró-nazista em 1941. Este
tio seria o mentor ideológico do futuro tirano.
No Cairo, onde passaria quatro anos, Saddam estudou direito e se casou com uma prima, Sajida, filha do tio Khairallah. Mas, em fevereiro de 1963, outro golpe depôs o general Qassim e Saddam retornou a Bagdá. No novo regime, ele encontraria sua vocação: tornou-se interrogador e torturador em Qasr-al-Nihayyah (Palácio do Fim). Depois ele montou o aparato de segurança do Baath, criado para enquadrar os militantes e intimidar os inimigos do partido. Em julho de 1968, o Baath finalmente tomou o poder – claro, através de outra sangrenta quartelada. O general Ahmad Hassan al-Bakr assumiu a presidência da República; seu primo Saddam tornou-se o segundo homem do novo regime. Sua base de poder era o aparato de inteligência, através do qual ele estendeu seus tentáculos sobre o partido e o Estado. Em 1979, Saddam substituiu Al-Bakr como presidente. Promoveu um violento expurgo na cúpula partidária e obrigou membros graduados do Baath a participar dos fuzilamentos dos ex-correligionários. Em 24 anos de ditadura, Saddam perseguiu implacavelmente seus adversários, inclusive parentes. Calcula-se que pelo menos 300 mil pessoas foram mortas pela repressão. Um dos episódios mais dramáticos ocorreu em 1988, quando o Exército iraquiano atacou com armas químicas a aldeia curda de Hababja, matando cinco mil civis.
A megalomania do ditador levou o Iraque e seu regime à ruína. Apesar
de ter investido na infra-estrutura, na educação e na construção
de um poderoso Exército, Saddam exauriu o país na guerra contra
o Irã (1980-1988), que teve pelo menos um milhão de mortos, metade dos quais iraquianos. Depois, ele cometeu seu maior erro de cálculo ao invadir o Kuait, em 1990, acreditando que teria carta branca do Ocidente. Perdeu a guerra para uma coalizão liderada pelos EUA e o Iraque padeceu dez anos sob um brutal embargo econômico. No último ato, ele acreditou que poderia se salvar da obsessão de Bush jogando os aliados ocidentais uns contra os outros.
Depois da queda do regime, Saddam distribuía fitas nas quais aparecia desafiante. Ao ser preso, ele era uma pobre caricatura de si mesmo, a própria encarnação do medo que ele tanto disseminou no Iraque.