24/12/2003 - 10:00
A caça a Saddam Hussein acabou. Não com explosões, mas em sussurros: “Eu sou Saddam Hussein, presidente do Iraque, e quero negociar”, balbuciou o velho, esfarrapado, desgrenhado e sujo tirano. Estava literalmente enterrado vivo numa cova rasa, de 2,50 m de comprimento e 65 centímetros de largura. “O presidente Bush manda lembranças” foi a resposta que recebeu de um de seus captores. No buraco onde se escondia – no quintal de um barraco na vila de Ad Dawr (noroeste do país), o ex-ditador iraquiano mantinha uma faca, uma caixa com US$ 750 mil em notas de US$ 100 e uma pistola 9 mm. Não teve coragem de usar as armas à mão e passar à história como um mártir. Não terá, portanto, direito às 78 virgens que esperam os mártires no paraíso islâmico. Saddam, diga-se, nunca foi muito religioso. Lembre-se que o velhinho, que inspirou dó ao redor do mundo ao ser mostrado, no dia seguinte, em vídeo de seu exame médico por militares americanos, foi o homem que mais matou muçulmanos no século XX. No sábado 13, às 8h30 locais, ele estava a caminho da prisão e julgamento, que ele negou a milhões de suas vítimas.
Para um homem que era reconhecidamente germofóbico – subalternos eram obrigados a beijar seu ombro ou cotovelo, numa corruptela do tradicional ósculo de saudação –, Saddam foi capturado num paroxismo de insalubridade. O buraco onde se refugiara estava no quintal de um barraco. Debaixo de um alçapão, coberto por um tapete plástico, sob tijolos, terra e gravetos, sua tumba tinha um pequeno ventilador.
Era o projeto arquitetônico típico dos esconderijos onde ele passava
não mais do que quatro horas, antes de pular em outra trincheira semelhante. O major-general Raymond Odierno, da 4ª Divisão de Infantaria americana, responsável pela captura, disse que Saddam foi pego “como um rato”. Uma comparação errônea, visto que ratos costumam construir suas moradas com múltiplas saídas de emergência e, quando encurralados, lutam como feras. O ex-ditador foi agarrado mais ao estilo dos cordeiros. Na operação de captura, chamada HVT Nº 1 (nas iniciais, em inglês, de alvo de alto valor número 1), foram empregados 600 homens e um arsenal que contou com tanques e blindados, helicópteros Apache, aviões de ataque terrestre e peças de artilharia, além de parafernália de sondagem do solo.
Piolhos e DNA – Pouco mais de 24 horas depois, o mundo o veria em humilhante exame médico-odontológico, em que um militar americano vasculhou sua cabeça e cerrada barba para verificar qualquer colônia de piolhos. Depois, sob as luzes de uma lanterna de mão, uma espátula foi introduzida na boca daquele que no passado costumava mandar arrancar a língua de traidores. Colheu-se também amostras de seu DNA para confirmação de identidade. “Queríamos ter certeza de que não tínhamos agarrado um de seus sósias”, disse a ISTOÉ o ex-chefe de contraterrorismo da CIA, Vince Cannistrapo. Três horas depois de garantida cientificamente a autenticidade do prisioneiro, o presidente George W. Bush recebeu a notícia, que vinha esperando há anos, desde que seu pai declarou guerra ao mesmo indivíduo. A esta altura, já tinham raspado a barba do preso, deixando-o apenas com o famoso bigode. Como prisioneiro de guerra, de acordo com a Convenção de Genebra, assinada em 1949, imagens do inimigo não podem ser divulgadas à imprensa. O que se viu foi o chamado arrepio da lei.
Os primeiros a noticiarem ao mundo que Saddam estava na jaula
foram membros do Conselho Político do Iraque – a colcha de retalhos de líderes civis iraquianos que serve de fachada para o governo de fato exercido por Paul Bremer III, o administrador americano no país.
Para ter uma idéia da incompetência e falta de informação deste conselho, num dos primeiros comunicados, Adnan Bachachi, membro do grupo, disse que Saddam estava usando uma barba falsa. O prisioneiro seria visto depois cofiando con gusto os longos pêlos do queixo, sem arrancar o suposto disfarce. Será esta mesma gente quem cuidará de um futuro julgamento. Na semana anterior à prisão do ex-ditador, um arremedo de Tribunal de Justiça foi oficializado no país, exatamente para processar os antigos membros do regime deposto. “Os Estados Unidos terão participação ativa neste processo”, avisou da Casa Branca o presidente Bush, que literalmente falou a favor da pena capital. Em se tratando de Saddam, a presunção de inocência do réu até provas em contrário vai para as cucuias.
Vince Cannistrapo conhece bem os meandros desta captura que
demorou nove meses e teve várias tentativas frustradas por
questões de horas. Ele reconheceu a ISTOÉ que a versão oficia
l da operação não é totalmente verdadeira. O que se disse foi
que comandos especiais do Exército americano foram cercando
ex-guarda-costas, ex-mordomos e suas famílias – no melhor estilo de investigação dos países árabes – e apertando todos para saber o paradeiro do ex-ditador. “Na verdade, Saddam foi vendido por um líder
de sua própria tribo. Essa pessoa foi presa na operação arrastão e,
sob pressão, acabou negociando a denúncia. Não vai receber a prometida recompensa de US$ 25 milhões, mas sairá com muito
dinheiro no bolso. A vida desta pessoa não vale mais nada no Iraque e ele terá de fugir do país”, disse Cannistrapo. Algumas agências de notícias chegaram a dizer que o próprio Saddam, cansado da fuga, negociara sua captura. “Isso é uma bobagem sem tamanho. Você acha que ele concordaria em ser preso num buraco infecto e com aparência tão desgraçada? Do modo como foi feita sua prisão, a humilhação foi muito grande e já teve enorme impacto na população árabe.”
O comportamento do mundo árabe esteve entre as preocupações
dos EUA desde que os filhos de Saddam, Uday e Qsay, foram mortos
em tiroteio com tropas americanas. Houve incredualidade na exposição dos cadáveres, que tiveram de ser reconstruídos – à moda dos bonecos de cera do museu de Madame Tussaud. Para o troféu maior, Saddam, todo um esquema de comunicações foi montado por uma equipe americana chefiada pelo ex-jornalista Gary Thatcher. “Não queríamos mais repetir o espetáculo macabro de exposição de cadáveres para a mídia mundial. A estratégia era colocar as filmagens e divulgação da captura ou do morto – em caso de resistência – nas mãos dos militares. Por isso, não foi permitida a presença da imprensa no local do esconderijo antes de o anúncio do sucesso ter sido feito. E queríamos que o comunicado partisse de gente do Conselho Político de Governo do Iraque”, disse Thatcher.
As imagens mostradas ao mundo pareciam revelar um homem desorientado, dócil e cooperativo. Na verdade, depois se saberia que Saddam se comportou com sarcasmo e não respondeu aos interrogatórios por que passou. Até o final de semana, mantido em local não revelado no sul do Iraque, o prisioneiro não confessou possuir as chamadas armas de destruição em massa, que foram a grande justificativa dos governos americano e britânico para a invasão do país. A única arma química e bacteriológica encontrada até agora foram os eflúvios emanados do corpo do próprio Saddam, depois de prolongada ausência de banhos em buracos por onde passou. A despeito disso, o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, disse na semana passada que acredita que a coalizão vai encontrar as tais armas.
Insurgência – O que ninguém acredita é que a captura de Saddam irá diminuir o ímpeto da insurgência, que já matou centenas de soldados das forças de ocupação. No mesmo dia do anúncio da prisão do ditador, enquanto uns tantos iraquianos comemoravam nas ruas, a guerrilha perpetrou 11 atentados, matando 46 cidadãos do país e dois americanos. Na quinta-feira 18, o chefe da Autoridade Provisória da Coalizão, Paul Bremer, revelou que sofreu um atentado no dia 6 de dezembro, quando o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, visitava o Iraque. Na mesma quinta, em Samarra, a 30 quilômetros de Bagdá, as forças de ocupação conseguiram prender 86 insurgentes. Fontes do Pentágono garantiram, porém, que na caixa onde Saddam mantinha os US$ 750 mil estavam documentos que permitiram a prisão de dois líderes graduados da guerrilha, embora suas identidades não tenham sido reveladas. Nem mesmo o presidente Bush acha que a rebelião estava sendo controlada ou coordenada pelo ex-ditador. “Trata-se de uma revolta com ações múltiplas e comando fragmentado”, comentou Rumsfeld. Desse modo, a guerra vai continuar, independentemente da prisão de Saddam.
Para o presidente Bush, porém, essa captura não apenas encerra
uma etapa da luta iniciada por seu pai, trazendo um gostinho de vingança contra um rival odiado, mas também representa vitória
política valiosa no campo doméstico. As pesquisas de opinião, que
lhe davam apenas 45% de aprovação – índice mais baixo de seu
governo –, pularam para o patamar de 52%. No começo de dezembro, 56% achavam que a ocupação iraquiana estava sendo malconduzida. Agora, esse número caiu para 43%. Saddam, no final, é capaz de ajudar a reeleger George W. Bush.