O coronel Muammar Gaddafi, ditador da Líbia desde 1969, tem a seu dispor uma orquestra bem afinada de empresas de relações públicas espalhadas pelo mundo. Os ensaios para grandes concertos que almejam os aplausos do mundo já vinham sendo feitos em ritmo fortíssimo desde o ano 2000. Foi quando foram entregues à Justiça internacional dois agentes líbios – um oficial militar da área de inteligência e um executivo da companhia aérea nacional – acusados de executar o atentado ao vôo 103 da empresa americana Pan Am. O avião foi abatido em 18 de dezembro de 1988 sobre Lockerbie, na Escócia, matando 269 pessoas. Dois dias antes do 15º aniversário desta tragédia, a Líbia anunciou que vai desmantelar todo o arsenal de armas não-convencionais que vinha tentando produzir. E mais: permitirá inspeções regulares e não anunciadas às instalações nucleares que possui e teoricamente estão capacitadas à produção de bombas nucleares. O timing do anúncio não poderia ser mais oportuno, não apenas para Gaddafi, empenhado em quebrar o isolamento no qual vive seu regime e em diminuir o impacto da efeméride do terror que provocou. Mas também para seu adversário George W. Bush, que ganhou de presente de Natal uma justificativa para sua política de guerra no Iraque. A Casa Branca, que tem sinfônica muito mais respeitável em termos de relações públicas, trombeteou que a decisão líbia é consequência direta da doutrina Bush e da invasão iraquiana.

Os sons partidos de Washington, porém, estão em desarmonia com a realidade. Na verdade, a campanha de Gaddafi – comandante de uma economia estrangulada por sanções – vinha tentando, há três anos, afinar-se com a política internacional, despindo a fatiga do guerreiro em troca da casaca dos diplomatas. Note-se o calendário das ações da Líbia e dos Estados Unidos. O Iraque foi invadido em março de 2003 e, um mês antes disso, equipes dos serviços de inteligência britânico e americano já começavam a negociar secretamente com os líbios este anúncio de agora. Portanto, os primeiros acordes neste show já estavam sendo tocados quando Saddam Hussein ainda morava em palácios em Bagdá. Depois de entregar os agentes responsáveis pelo atentado ao avião da Pan Am – o militar foi condenado em janeiro de 2001, e o executivo da companhia aérea foi absolvido –, o coronel Gaddafi entrou em acordo com a família das vítimas do ataque e se comprometeu a dar US$ 5 milhões de indenização para parentes de cada morto. Na França, houve protestos de gente que sofreu perdas em outros ataques terroristas líbios, e estes também foram colocados na lista de pagamentos compensatórios. Assim, em 12 de setembro último, a Organização das Nações Unidas levantou as barreiras comerciais impostas a Trípoli. Somente americanos e britânicos mantiveram proibições de comércio.

“Há quem acredite que o destino de Saddam forçou a decisão de Gaddafi. Mesmo gente do Partido Democrata cai neste conto do vigário. Mas na verdade, esse passo da Líbia já vinha sendo tomado há muito tempo. Antes mesmo que as primeiras tropas de invasão iraquiana pisassem no Oriente Médio”, diz o analista de política do Oriente Médio Albert De Palma, ligado ao Comitê Nacional Democrata.
Ele lembra também que Gaddafi vinha recebendo elogios pela pele de cordeiro que vestiu na virada do século. O primeiro-ministro conservador Silvio Berlusconi, da Itália, país com tradicional parceria com a Líbia, visitou Trípoli e serviu de mensageiro anglo-americano. “Berlusconi garantiu que uma renúncia a armas não convencionais e amplas inspeções às instalações nucleares – de Tarhuna e Pharma, sudoeste de Trípoli – garantiria pressa nas normalizações de relações econômicas com a União Européia”, diz De Palma.

Concorrência – Hoje em dia, a Líbia sabe que seus clientes preferenciais devem ser aqueles que compram petróleo, não armas. Até o ano 2000, os terroristas eram os únicos fregueses de Gaddafi. A ambição de ser um líder pan-árabe, que enchia a cabeça do coronel, também teve um revés com a espetacular entrada em cena de Osama Bin Laden. “Gaddafi perdeu o concurso de popularidade entre os árabes. Hoje, Bin Laden é o ídolo. Há três anos, o coronel já havia tomado plena consciência disso, tanto que fechou a maioria dos campos de treinamento de guerrilheiros que mantinha no país, deixando apenas algumas instalações que acomodam palestinos, para fazer média com os árabes. Tamanha foi a tentativa de se afastar de seus antigos companheiros de armas que Gaddafi andou cortejando países africanos, dizendo que a Líbia pertence mesmo à Liga de Nações da África. Este empenho regional ainda continua a todo vapor”, diz o analista democrata.

Prometendo assinar o Protocolo Adicional do tratado de Não Proliferação Nuclear – que permite visitas suspresas às instalações do país – e dando acesso internacional ao processo de desmantelamento de armas não convencionais, Gaddafi não está pensando apenas em salvar o próprio pescoço de uma duvidosa invasão militar anglo-americana: ele salva o próprio bolso e o estômago de seus conterrâneos. A predisposição ao comércio já havia sido amplamente mostrada aos brasileiros, quando da criticada visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Trípoli, no começo do mês. A esses críticos, a orquestra de relações públicas do Palácio do Planalto pode responder que foi o pé-quente do presidente Lula quem provocou o anúncio pacifista líbio.